por Gigi Suleiman
Penso muito sobre o silêncio e em vários aspectos acredito que ele abriga os melhores discursos. Mas quando eu falo em silêncio eu não me refiro à simples ausência de som. Quando falo em silêncio é a sensação de olhar um céu estrelado longe da cidade grande e compreender o infinito e a finitude do nosso reflexo nele. A sensação de estar submerso no mar e não sentir o peso do próprio corpo. Observar a fumaça do café de manhã sem nenhuma trilha exata de pensamentos. De estar no meio de uma floresta densa e ouvir a sinfonia do farfalhar das folhas e dos zumbidos. Quando falo em silêncio estou me referindo à mensagem da animação Straume (Flow, no Brasil), de 2024 dirigido por Gints Zilbalodis e escrito por Zilbalodis e Matīss Kaža, ganhador do Oscar 2025 de Melhor Animação.
O filme é ambientado em uma floresta que sofre por uma grande inundação. O espaço ficcional retratado apresenta casas e cidades inabitadas, sem nenhum humano presente. A história segue um gato preto, que inicialmente está vivendo seu cotidiano de acordar, procurar água e comida, buscar abrigo e fugir de um grupo de cachorros. Depois, a água toma conta de tudo e uma enchente deixa todo seu mundo submerso. O gato se abriga em um barco com uma capivara e aos poucos outros animais vão sendo resgatados ao longo do caminho.
Cada animal apresenta suas necessidades e características próprias e passam pelo desafio de abrigar todas suas diferenças. Em meio às dificuldades, eles encontram uma sintonia, uma fluidez entre si. Neste ponto, o filme demonstra um aspecto que muitas vezes esquecemos, de que estamos todos no mesmo barco. Em meio ao caos e a turbulência existe a necessidade de encontrar a fluidez social, o equilíbrio em meio às diferenças. No entanto, gostaria de apontar que a visão mais ampla do filme é a ecocrítica.
A ecocrítica é o estudo do silêncio – das vozes silenciadas – da natureza e do mundo exterior. Em Straume (2024) não existe nenhum diálogo. Por oitenta e cinco minutos você é levado a contemplar a natureza de forma silenciosa e não é apenas qualquer natureza, é a natureza em crise, a Terra sendo tomada pelas enchentes. Por oitenta e cinco minutos você é levado a contemplar a ecocrítica animada.
O respeito e o laço criado entre os animais, tanto entre si quanto com as fases que a natureza apresenta na obra, estão interligados com o aspecto da crise climática por meio da enchente.
“O Grande Dilúvio” é um tema mitológico e religioso antigo. Desde o Gênesis com a arca de Noé; o Épico de Gilgamesh com o barco de Utnapishtim; Deucalião e Pirra da mitologia grega com seu cofre flutuante; Manu e Matsya da mitologia Hindu com seu barco amarrado no peixe; os mitos Maias e Astecas em que apenas um casal sobrevive dentro de um tronco oco de árvore, até mesmo o mito nórdico em que o mundo é inundado pelo sangue da gigante Ymir e apenas ela e seu marido sobrevivem fugindo também em um tronco de árvore.
Em suma, no imaginário humano, a água torna-se dominante e a humanidade como conhecemos é submersa e perdida, salvo algumas pessoas. No filme, parece não haver mais humanidade e vemos como a vida continua sem ela.
“Flow” não é uma palavra com uma tradução direta e completa para o português. Pode-se traduzir para fluxo, escoamento ou fluidez, mas seu sentido completo é de “deixar fluir” – dessa sensação de um fluxo constante da água, de seguir uma trajetória fluidamente, ou naturalmente.
Quando a ecocrítica fala que é necessário ouvir o silêncio é isso que ela quer dizer. Observar. Reconhecer. Respeitar. Deixar fluir.
Straume (2024) é um retrato do silêncio, da natureza, da sobrevivência e da ecocrítica em sua forma mais direta. O filme retrata a temática do “O Grande Dilúvio” de uma forma ecocrítica, de descentralizar o homem do foco da história e centralizar a natureza. Neste ponto vale ressaltar que diferente de outras animações em que os animais ganham traços humanos, em Straume (2024) os animais mantêm seus caráteres naturais. Não existe a humanização da natureza ali apresentada. A obra expõe o laço entre os seres e os ciclos da natureza, o processo que eles tomam de aceitar seus ciclos e de juntos encontrarem formas de viver. Assim, a obra nos mostra toda a vida gritante que existe nas vozes sem palavras e como podemos aprender a ouví-las melhor. Ou de como deixar fluir em sintonia com os ciclos da natureza.