por Pedro Henrique de Cristo
“Filho, está horrível aqui em São Paulo, está ruim de respirar e estamos tão envoltos em fumaça que a gente não consegue nem ver os outros prédios”, me contou nesta terça minha mãe sobre sua estadia na Pauliceia. Havia ligado com preocupação para pedir que ela, meu pai e sobrinho de 2 anos se cuidassem em meio a este cenário apocalíptico resultante da crise climática.
São Paulo é a cidade com pior qualidade de ar do mundo junto a Porto Velho (RO), Rio Branco (AC) e Lahore na Índia desde o domingo dia 08/09 até esta quinta dia 12/09 (IQAir) e pelo menos 200 cidades no Brasil apresentaram umidade igual ou pior a do deserto do Saara como resultado dos mais de 5 mil incêndios atualmente registrados pelo país (parte dos 189 mil neste ano), a maior parte deles iniciado pelo agronegócio, 95-97% de acordo com o cientista Carlos Nobre. O balanço climático, de acordo com o pesquisador da USP e UFAM, Lucas Ferrante, é que o sudoeste da Amazônia tem sido o lugar que mais emitiu GHG – Gases de Efeito Estufa no planeta nos últimos 5 dias.
Predominantemente causada globalmente pela insistência suicida nos combustíveis fósseis e nacionalmente pela destruição ambiental, devido a práticas arcaicas que fogem de controle do agronegócio que insiste em atear fogo no campo seja para desmatar e roubar terras ou para preparar a terra para novo plantio, a crise climática torna mais propícios incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Estes dobraram neste ano em relação a 2023, devido aos extremos de calor, seca histórica e bloqueio atmosférico de alta pressão com ar quente que agora enfrentamos em escala continental e a falta de capacidade institucional dos governos federal, estaduais e municipais. O resultado é que pessoas inocentes, principalmente idosos e crianças, estão sendo contaminadas pela poluição que equivale nos últimos dias a fumar 12 cigarros diariamente em São Paulo.
Com 60% do país envolto em fumaça (Longo, INPE) no mesmo ano da catástrofe das chuvas em Porto Alegre, é verdade que nosso congresso tem enorme responsabilidade, mas é fato que as lideranças públicas não conseguem superar o estado de reatividade. Pois apesar de buscarem se mexer, é latente a falta de um plano de ação efetivo. Ou tivemos alguma proposta de resiliência para as chuvas além do necessário, mas sozinho obsoleto, “é preciso plantar mais árvores e recuperar os mananciais”? Quando sabemos que é preciso muito mais que isso, como redesenhar nossas geografias e transformar nossas cidades e infraestruturas? Ou alguém propôs algo novo para evitar o desastre que engole nosso país em chamas desde o ano passado e só aumenta a cada novo ano mais quente?
Não dá mais para ficar falando o irritante “eu avisei” e nem que “estamos fazendo tudo o que pode ser feito” que temos ouvido tanto nos últimos dias. Agora chegou a hora de falar “como é que a gente resolve isso e quem é que sabe como fazer?”
Um pouco antes destes terríveis incêndios tomarem o Brasil, apontei em uma conversa que Angola, Congo e Moçambique estavam pegando fogo na África do oceano Atlântico até o Índico na mesma latitude do, vejam só, Sudoeste da Amazônia, e questionei uma das pessoas mais influentes do ambientalismo tradicional sobre o que o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA) estava fazendo como plano de resiliência climática. A sua resposta foi “estamos fazendo um plano incrível de resiliência com mais de 60 instituições!” A qual eu perguntei para seu espanto “E adianta juntar tanta gente sem especialistas em resiliência?” Cientistas são importantíssimos, eles que nos alertam com suas análises e projeções, e bons ONGeiros têm o seu papel de cobrar a sociedade mas sem verdadeiros especialistas na criação de soluções de resiliência e transição climática e ativistas independentes não se faz o caldo necessário para chegar nas devidas soluções.
Na Ilíada de Homero, Agamenon, rei dos gregos, conversa com Nestor, de que eles precisam de dois homens que seriam hoje classificados de outsiders do poder para ganhar a guerra contra Tróia, Odisseu e Aquiles. Aquiles, obviamente por ser o maior guerreiro grego vivo. Odisseu no entanto era rei da pequena Ítaca, um reino sem grandes riquezas ou exército. Então por que Agamenon e Nestor fizeram questão de ir com Palamedes à ítaca para trazer Odisseu para a guerra mesmo sabendo que este preferia ficar em sua terra com esposa e filho recém nascido? Porque eles sabiam que nenhum outro grego era tão inteligente e sagaz, ou seja, capaz de resolver problemas, como Odisseu e que eles não triunfariam nessa épica empreitada rumo ao desconhecido sem os melhores de toda a Grécia. Nas horas de crise o saber fazer vale mais do que nunca.
Existem boa-vontade e bons quadros nas áreas ambiental e climática do governo federal, mas a falta de um plano claro de resiliência e transição climática, um plano específico para a COP 30 e a insistência em falsas soluções são notórios. Para superar a maior crise da história da humanidade é preciso fazer o que funciona e trazer os melhores mesmo que eles não façam parte dos grupos de poder desta gestão.
E também é fundamental, como bem apontou o jornalista Elio Gaspari, que as lideranças assumam maior responsabilidade como a ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), que apesar de sua bela história não está acima do bem e do mal. Houve erros como a defesa da mesma aos famigerados créditos de carbono que não estão servindo para proteger a Amazônia e nossos outros biomas, por exemplo.
Acredito que ela merece ser a ministra e é junto a este governo muito melhor ambientalmente que o governo negacionista passado, mas se tal for o único parâmetro estamos destinados a catástrofe. E, ação climática é muito mais que ação ambiental pois engloba tudo e o governo precisa entender isso.
É verdade que o trabalho a ser enfrentado é homérico mas muito mais pode ser feito, inclusive pelo próprio presidente e sua equipe que apesar de produzirem importantes avanços nas áreas social e econômica ainda patinam com uma visão desenvolvimentista do século XX fortemente ligada à indústria fóssil. O governo federal precisa compreender de uma vez por todas que o agravamento da crise climática junto a visível falta de preparação de resiliência, principalmente urbana, infraestrutural e territorial, já estão começando e vão destruir cada vez mais os resultados conquistados com muito esforço pelo próprio governo.
O tamanho desse problema é apontado pela sua escala, mais da metade do Brasil coberto de fumaça, enquanto a macro seca atual atinge 55% do território brasileiro sendo a mais extensa da nossa história com 4,6 mi de km2 e evapora nossos maiores rios, como o São Francisco, que já perdeu 60% de sua vazão nos últimos 30 anos, e o Madeira que desaparece com mais força recentemente na Amazônia. Como o colapso é sistêmico, pelo menos 12 grandes hidrelétricas, nossa maior fonte de energia, estão em severo risco produtivo. Enquanto isso, o RS ainda está longe de se levantar da catástrofe vivida com as chuvas no primeiro semestre.
É positiva a criação da “Autoridade de Emergência Climática” mas não adianta o fazer achando que a mesma terá autoridade só pelo nome e mantendo as mesmas dinâmicas das estruturas existentes. Hoje a ministra declarou que a função da “Autoridade” é a gestão de desastres e áreas de risco, o que conceitualmente, junto com o próprio nome já demonstra que o funcionamento desta será complicado. Outro problema é o desejo da mesma de que a “Autoridade” seja ligada ao MMA e não a Casa Civil, que é o braço da presidência entre os ministérios e tem por função os coordenar. O arranjo proposto cria empecilhos práticos para que outros ministros aceitem as determinações do órgão uma vez que isso tornaria a ministra de facto mais poderosa que seus pares.
O que precisávamos era fazer isso e mais com uma agência criadora de soluções e incentivos, algo como a mistura da NASA e da EPA – Agência de Proteção do Meio Ambiente nos EUA com uma EMBRAPA e EMBRAER do clima, para atuar junto às universidades, setor privado e sociedade civil, desenvolvendo as legislações necessárias junto ao congresso e acima de tudo construindo com os demais ministérios um grande plano de investimento e desenvolvimento para a transformação climática denominado globalmente de Novo Acordo Verde. Por mais urgente que seja, só responder e atuar nos territórios em risco vai nos manter eternamente correndo atrás da crise climática enquanto suas causas não são resolvidas e ela se espalha.
Não podemos enfrentar a maior crise existencial da nossa história com soluções do passado que não servem mais, precisamos inovar em qualidade e escala para sobreviver a esta tribulação, não há mais tempo. Se milênios atrás Odisseu foi recrutado para então conseguir dar um jeito de trazer Aquiles e depois ter a ideia de fazer o Cavalo de Tróia, famosa jogada que permitiu aos gregos vencerem guerra esta que se arrastava por 10 anos a um custo insustentável. Não é possível que mais de 3 mil anos depois as lideranças do nosso país não sejam capazes de fazer o mesmo que fizeram Agamenon e Nestor e trazer nossos Odisseus e Odisséias para o governo. Nosso povo só quer viver e vencer esse desafio que ao contrário do que muitos falam não é culpa nossa. Não queremos só mitigação, queremos cura, não queremos só adaptação, queremos transformação. A hora chegou, ou vai ou racha.
Pedro Henrique de Christo (urbanista climático, notório saber, fundador do estúdio interdisciplinar +D de Arquitetura & Urbanismo, criador do primeiro Modelo 4D de simulação de cenários climáticos urbanos, professor visitante de desenho urbano no URBAM-Eafit Medellín, presidente do NAVE – Novo Acordo Verde, Dir. do Parque Sitiê e Mestre em Políticas Públicas – MPP’11 em Harvard);