Cacique Raoni Metuktire é alto, muito alto. Medida? Não sei quanto tem exatamente, 1,95, talvez… nem a idade é possível saber. Dizem que teria nascido em 1932, o que lhe atribuiria 93 anos. Mas nada disso parece pesar, muito menos, importar, para ele. Fala com força, ri bastante. O avançado da idade só se revela no caminhar um pouco arrastado. O encontramos em uma tarde de abril, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
Uma tarde da qual relembramos agora, porque Raoni faz um chamado. O líder indígena está reunindo esta semana mais de 800 lideranças Guardiãs da Mãe Terra para uma reunião que acontece na Terra Indígena Capoto, na Aldeia Piaraçu, em São José do Xingu, no Mato Grosso onde ele mora. Um chamado ao presidente Lula e a todas as nações em defesa do meio ambiente e dos povos originários.
Um chamado que remete novamente àquele dia, quanto tivemos um tempo concorrido entre muitos veículos de imprensa e gravações de documentários, para conseguir uma entrevista que, oficialmente, tem apenas 11 minutos. Era o encerramento da exposição Xingu, e conseguimos visitá-la rapidamente com o melhor guia possível, o próprio Raoni que se emocionou lembrando da constituinte e de muitos outros fatos cujas imagens da exposição fizeram ressurgir em sua memória.
Acompanhado por familiares, Raoni não fala mais português, já não tem paciência para isso, fala em Kayapó (ou Mebengokré), língua de seu povo, o seu neto traduz o que fala. Sua personalidade é de alguém que realmente nasceu em outro tempo, talvez outra dimensão. Afinal, Raoni viveu sua juventude sem contato com o homem branco e o modo de vida da “sociedade da mercadoria”, como define outro famoso líder indígena, David Kopenawa no seu épico livro “A queda do Céu”.
Foi em 1954, quando teria por volta de 20 anos, que Raoni encontrou esta sociedade. Seu primeiro contato se deu com os irmãos Villas-Bôas, que eram, então, líderes de expedições estimuladas pelo governo de Getúlio Vargas, decidira “povoar” o país rumo ao oeste.
Desde então, após este encontro, no estado do Mato Grosso, a história de vida de Raoni se tornou inseparável da história do Brasil e da luta pela preservação da floresta e dos povos originários do Brasil e do mundo. Ali surgiu também uma improvável, mas grande amizade entre o jovem indígena e os três irmãos, – Orlando, Cláudio e Leonardo – sobre a qual Raoni sempre fala com emoção. Talvez porque ela tenha sido calcada em sinceridade.
“Eles falaram muita coisa que virou realidade para mim, me aconselhavam fortemente para que eu seguisse o caminho que eles queriam e deu certo. Eles me avisavam: ‘nós [homens brancos] somos gananciosos, somos bandidos, ladrões, doidos,’ assim eles disseram para mim e hoje eu vejo que era verdade “‘, conta Raoni.
A liderança de Raoni ultrapassou fronteiras. Nos anos 70 sua luta foi tema de um documentário indicado ao Oscar. Um filme que teve a participação do ator Marlon Brando. Fez amizade com ícones políticos e culturais, a mais conhecida delas com o cantor Sting. Também puxou a orelha de alguns, como fez com o então ministro do interior, Mário Andreazza, dizem, em 1984. Participou da constituinte em 1985, lembrou disso com emoção olhando a foto na qual aparece ao lado de personalidades como o então líder do congresso, Ulisses Guimarães. Mais recentemente viajou o mundo para protestar contra a construção de Belo Monte.
Foi esta presença na história do país que lhe rendeu o convite para subir a rampa do Planalto no dia primeiro de janeiro ao lado de mais um político com quem ele tem uma relação de amizade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Raoni ri ao lembrar do encontro no com Lula no dia anterior à posse.
“Conversamos sobre como já estamos ficando velhos, com idade avançada. Também comentei que eu iria abrir as portas para ele ser presidente do Brasil e no dia seguinte subimos a rampa. Eu fiquei muito contente vendo todo mundo aplaudindo, eu e ele ali. Juntos”, conta.
E assim foi Raoni para mais uma foto histórica em sua vida. Entretanto, o cacique sabe que o futuro não está garantido, pelo contrário. Sua preocupação é maior pela falta de atenção dos jovens aos seus alertas. “Eles não me ouvem, eu tenho vontade de matá-los”, fala e ri novamente.
Por enquanto o que ele tem é o reconhecimento dos mais velhos. “Depois da posse eu encontrei o José Sarney (ex-presidente e, também velho conhecido do cacique) ele me disse que eu estava maior que todos eles, a mesma coisa que me disse um ex-presidente da Funai que também estava lá”, diz.
E, é desta posição, de um lugar mais alto que sua própria estatura, que Raoni vê as mulheres indígenas ganharem espaço na política. “Eu acho muito importante a ministra Sônia [Guajajara] e também a Joênia [Wapichana] na Funai, elas vão trabalhar sempre respeitando nossos povos e isso é importante porque o futuro é indígena”, fala.
Personagem elo entre um Brasil de uma era analógica, que teve o privilégio de crescer sem ter sua cultura devastada, Raoni apresenta a sabedoria de quem soube ouvir os conselhos que recebeu dos homens brancos para proteger sua cultura e ancestralidade.
“Eles [os Villas-Bôas] me avisaram que eu não deveria tomar álcool, que ia acabar com a minha cabeça e ficar doido, que era ruim para os indígenas, e até para o homem branco. Quando me ofereciam bebida eu aceitava e derramava, jogava fora. Eu segui o caminho certo e por isso hoje estou aqui”, fala.
Depois de junho ter sido declarado o mês mais quente da história, – segundo os cientistas – e, em meio a uma quantidade incrível de cenas apocalípticas de fenômenos climáticos nos quais mais parecemos estar vivendo tudo que foi previsto para 2030 em 2023. Raoni está preocupado, pois, assim como outros pajés e líderes como Ailton Krenak, e o próprio Kopenawa, ele vê os alertas da natureza e da terra. Os avisos do clima estão cada dia mais presentes, dois ciclones atingiram o sul do país de forma devastadora em um único mês, e um forte El Niño começou a demonstrar do que é capaz quando combinado com emergência climática no verão europeu. Seu auge será no nosso.
Raoni faz este chamado e segue resistente, firme, embaixo de um cocar de penas amarelas se expressando de modo contundente. No fim daquela tarde ele nos abraçou com força, e falou em caiapó, algo que não entendi, seu neto me traduziu: ele pediu para que vocês divulguem tudo isso ao máximo. A se considerar todos os alertas. É urgente que o Brasil ouça este chamado do Brasil do Cocar, aquele que sempre existiu, muito anterior ao Brasil da Coroa e que carrega, acima de tudo, o conhecimento sobre como a humanidade pode coexistir com a natureza.
fotos de @Gabi Di Bella