Texto de Gabriela Di Bella
Fotos de Gabriela Di Bella e Marcelo Curia
Neste mês da mulher, março, publicamos a segunda parte da história sobre a “Ciência brasileira abaixo de zero” (A ciência brasileira abaixo de zero – Fervura no Clima!). Voltamos para contar a história da cientista Venisse Schossler, 46. Sua vida passou por tempestades, bruscas mudanças e viradas de vento, mas as correntes a levaram a ser a primeira cientista mulher a participar – em campo – do projeto Criosfera, compondo a equipe que montou o segundo módulo da rede de monitoramento brasileira no continente gelado (Antártica), o Criosfera 2. É uma história de reviravoltas com ventos que levam também ao amor.
“Se eu não tivesse entrado naquele ônibus eu estaria dando aula no colégio até hoje”, conta a doutora em geociências da UFRGS. Uma rota que mudou após um reencontro com um ex-professor que a convenceu a voltar para a universidade e retomar o sonho de trabalhar com pesquisas científicas.
Sob mau tempo
A navegação de Schossler foi, na maior parte do tempo, em mar revolto. Quando ainda era bacharel em geografia na UFRGS sua viagem foi interrompida pelo assédio sexual por parte de um professor. “Hoje ele já faleceu e eu sei que não fui o único caso, mas decidi ir embora da faculdade desejando nunca mais colocar os pés lá. Eu percebi que se eu ficasse seria como se estivesse aceitando o que estava acontecendo e isso não era verdade”, fala.
Foi o medo de confrontar alguém que tinha poderes dentro da universidade e o fato de ter um filho pequeno que levou Venisse a aceitar o “naufrágio”. “Acho que nenhum homem faz ideia do que uma mulher passa para ser cientista, pois o machismo é muito estruturado e, muitos nem se dão conta do que fazem, algumas atitudes são automáticas”, fala.
Ela mudou de cidade e buscou um trabalho mais seguro. “Eu amava dar aula para crianças, mas é muita injustiça e falta de respeito desistir de todos os seus sonhos por causa do outro”, comenta.
A volta ao mar veio anos depois, quando, a caminho da escola onde dava aula Venisse reencontrou no ônibus outro ex-professor da graduação, o pesquisador Francisco Eliseu Aquino, também conhecido como “Chico Geleira”, doutor em Climatologia e Oceanografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático. “Naquele dia ele me falou que eu deveria voltar, que era ótima aluna, tirava boas notas e deveria tentar o mestrado; foi o que eu fiz”, fala Schossler.
Depois desta coincidência, Venisse nunca mais parou. Içou suas velas, analisou o vento e passou para o doutorado como orientanda de Jeferson Cardia Simões, professor titular de Glaciologia e Geografia Polar da UFRGS, pioneiro em estudos de ciência glaciologia no Brasil. Venisse passou a focar sua área de estudos na conexão climática entre a Antártica e os fenômenos do El Niño e La Niña, tão conhecidos pelos brasileiros. Em meio a maré mais calma, o então ex-professor, Chico Geleira, passou a ser mais que um colega de profissão, virou seu marido, com quem teve o segundo filho, hoje com 10 anos.
Além da resiliência que Venisse teve para voltar a estudar, uma combinação de fatores colaborou para que ela embarcasse rumo ao continente gelado para ajudar a montar o Criosfera 2, permitindo que, pela primeira vez, o casal passasse natal e ano novo juntos na Antártica, uma experiência nova para os dois. “Com a pandemia o projeto atrasou, ficamos sem dinheiro, e, também seria difícil treinar com alguém de fora do nosso círculo de relacionamento, então por conta disso e dos meus estudos eu completei a equipe”, conta.
Venisse explica que são necessárias quatro pessoas para erguer o módulo, uma de cada lado. “O trabalho na Antártica é braçal. Nós literalmente levantamos o módulo com as mãos, todos tem que estar muito seguros do que vão fazer lá e é necessário muito treinamento, pois qualquer pequeno detalhe pode pôr não só a vida da pessoa, mas a de todos em risco” explica.
Hoje, ela faz parte da rede de mais de 80 cientistas do Brasil que integram o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT) e desenvolve estudos na área de geologia marinha com foco na área de influência da mudança do clima na área costeira do Rio Grande do Sul. Seu trabalho consiste em “montar” o que chama de quebra cabeças de dados que recebe de satélites, “são como aqueles de mil peças”, comenta.
A pesquisa também auxilia na compreensão da ligação entre os eventos extremos que acontecem no Brasil e as mudanças climáticas como um todo.“Como pesquisadora associada do INCT e do Centro Polar, minha área é mais relacionada a eventos extremos, ciclones explosivos. Meu trabalho atual visa a associação de eventos climáticos que ocorrem na Antártica e a sua influência atmosférica em relação ao nível do mar no sul, mas meu objetivo é ampliar para todo o litoral brasileiro”, explica.
Inspiração para outras
Para Venisse, sua presença em meio a paisagem branca do platô antártico é a realização de um sonho que tem desde o primeiro dia de aula na faculdade. É também a prova de que as mulheres estão preparadas para fazer qualquer coisa. O cotidiano na Antártica exige disposição para ajudar a qualquer momento, e a se expor a ventos de mais de 80 km por hora e temperaturas de -15C, – 20C. Além disso, há uma dificuldade em regular o sono pois no verão Antártico não há noite. Entre novembro e fevereiro o sol não se põe no continente gelado.
A cientista ainda enfrentou o desafio de manter separado o lado pessoal e o profissional, pois o marido é seu chefe em campo, e “na Antártica se você brigar com alguém não tem para onde ir, a gente diz que é como estar no big brother e lá eu estava com o meu marido como chefe. Foi um exercício psicológico e físico muito forte”, conta.
Venisse sabe que, como ela, há outras cientistas no projeto, e quer ser inspiração para que as outras sigam a maré que puxou. Ela lembra que durante esta rota também sofreu preconceito de outras mulheres, que tiveram atitudes machistas e críticas por estar dividindo seu tempo entre os estudos e o filho pequeno. “Eu digo para as meninas que não desistam, que eu deixava de dormir para escrever minha tese; é importante acreditar na sua capacidade”, fala.
Assim como na navegação, a ciência ainda é um mundo dominado pelos homens, tanto que há dados revelando que a Antártica pode ser um lugar perigoso para cientistas mulheres, com índices altos de estupro e assédio (For Female Scientists, Antarctica Can Be a Sexual Harassment Hellscape – Mother Jones). Para sorte do Brasil, Venisse foi boa marinheira, levou seu barco devagar na tempestade e agora enfrenta outra, a das mudanças climáticas, sem desistir de mirar ao horizonte em busca de terra firme para além do aumento do nível das marés. Para esta cientista a previsão é de maré alta. Mas ela já sabe como enfrentá-la.