Os terríveis incêndios em Valparaíso e região no Chile e o estrondoso colapso de bairros inteiros em Maceió são ambos desastres causados por crimes contra a natureza, democracia e o erário público. Em Valpo (Valparaíso), onde trabalhei e mantenho colaboração profissional, os destruidores incêndios são o resultado da devastação da vegetação local por grandes empresas de papel que substituíram as espécies nativas por eucaliptos, uma madeira altamente inflamável e que suga água excessivamente do solo contribuindo assim para aumentar a seca que favorece os incêndios, e os crescentes efeitos da Crise Climática.
Quando estive lá participando da XX Biennale de Arquitectura de Chile, não só trabalhei como fiquei por alguns dias nos cerros (morros) que tinham sofrido em 2014 os piores incêndios da história do Chile causando a destruição de 9 mil casas e as mortes de mais de uma centena de pessoas. O que vi foi uma comunidade altamente organizada, liderada por mulheres de meia idade para cima que haviam produzido uma das maiores reconstruções pós-desastre de toda América Latina e mundo.
Nosso propósito era e continua sendo criar estruturas multi-funcionais de espaços públicos de democracia e áreas verdes nativas para aumentar a ocupação das ruas diminuindo assim a violência, aumentando a gestão do território e suas decisões pela população, não empresas de papel, e umidificando o solo e o ar para evitar a temida situação de 30-30-30. Ou seja, umidade menor que 30%, ventos de 30 km/h para cima e 30 C de temperatura, o cenário ideal para o pega fogo. Você deve estar se perguntando, “mas por quê permitiram a plantação de plantas incendiárias no lugar de vegetação nativa logo atrás das comunidades mais vulneráveis do grupo de cidades da região?”
A resposta está na autocracia de Pinochet e a promiscuidade clássica do facismo com o capitalismo sem regulação, o que se denominou de neoliberalismo. É surpreendente saber que o Chile só teve uma regulação ambiental nacional pela primeira vez após a eleição de Gabriel Boric para presidente em 2021. Desde a ocupação e exploração devastadora de áreas naturais por empresas de papel, mineração e outras commodities extrativistas durante o seu passado colonial e sangrenta ditadura o problema dos incêndios só aumenta e agora com a Crise Climática tudo tende a piorar se as coisas não forem realisticamente transformadas.
Ditadores não se importam com as pessoas e nem com a natureza e é daí que nasce mais este desastre no Chile. Em Valpo, desigualdade mais clara é impossível, a cidade que já foi o porto mais importante do Pacífico no século XIX e começo do século XX e que tem uma forma de concha, foi então dividida em sua metade pela Avenida Alemania que marca a fronteira entre seus prédios históricos e os cerros, suas comunidades pobres nos morros, logo depois das comunas nos cerros começam as plantações de eucalipto, a gasolina desses incêndios.
Pesquisas feitas pelo NASA Earth Observatory mostram que sim, a Crise Climática teve um efeito contribuinte para o inferno que devastou a região diferentemente do que colocam alguns think tanks bancados por corporações que tentam colocar a culpa da situação nas comunidades da região e utilizam modelos arcaicos que não inferem as complexas dinâmicas da Crise Climática de maneira satisfatória. Pois sim, há uma área de exceção no desequilíbrio climático em Valpo que levemente esfria o clima mas que diminui a umidade do ar e apresenta vastas amplitudes de variação de temperatura mantendo a probabilidade de incêndios altíssima. São interrelações assim que a maioria dos modelos climáticos falham em apontar enquanto desastres se repetem.
charge: Caco Garlhado
Já Elizabeth Wiggins, cientista pesquisadora do Langley Research Center que trabalha na área do Programa de Desastres do Earth Applied Sciences, ambos da NASA, demonstra em publicação recente no citado NASA’s Earth Observatory que: “Estes incêndios foram o produto de condições de uma tempestade perfeita… eles ocorreram durante uma onda de calor , seca e evento de ventos intensos nascidos de uma combinação do El Niño e da Crise Climática.” Seu colega, René Garreaud, cientista atmosférico da Universidade do Chile, adiciona: “O tempo extremo, especialmente o vento parece ter levado ao espalhamento rápido e transformou isto de um incêndio ordinário em uma tempestade de fogo com consequências trágicas.” Uma análise preliminar realizada por Garreaud mostrou que a média dos ventos chegou a 25 nós, 46 km/h, no Aeroporto de Rodelillo na região atingida pelos incêndios no dia 2 de fevereiro, início da tragédia.
Ojo Chile
O inferno gerado carbonizou 290 km2 e danificou ou destruiu mais de 14 mil casas e edifícios, 5 mil a mais do que os incêndios de 2014 e desabrigando cerca de 45 mil pessoas. As autoridades já registraram mais de 140 mortes e centenas ainda estão desaparecidos. Tais números fizeram deste último incêndio o quinto que mais tirou vidas globalmente desde 1900, de acordo com o International Disaster Database EM-DAT. “Incêndios que se movem rapidamente e são dirigidos por ventos extremos e combustíveis mais secos que o normal são excepcionalmente perigosos e quase impossíveis de se lutar contra. É notável e alarmante que nós estamos vendo esses tipos de fogo ocorrerem mais frequentemente por ecossistemas diferentes ao redor do globo, da floresta boreal até o chaparral (ecossistema costeiro seco presente em Valparaíso, Califórnia, Mediterrâneo e outras áreas),” aponta Wiggins.
É essencial notar que incêndios similares dirigidos pelos ventos devastaram partes do Colorado em 2021 e da ilha de Maui no Havaí ano passado. E que por mais que o extremo climático que habilitou este incêndio mais recente em Valparaíso seja considerado por cientistas em geral um “evento de cada 30 anos”, é a 3a vez que isso acontece na região desde 2010 (2010, 14 e 24). Os cientistas do clima precisam atualizar a sua linguagem para a nova realidade que vivemos.
Já em Maceió, o absurdo afundamento dos bairros de Mutange, Bebedouro, Pinheiro e Bom Parto localizados em área nobre e com grande potencial turístico na Lagoa do Mundaú que causou a evacuação de 60 mil pessoas de suas aproximadamente 20 mil casas é fruto da autocracia da corrupção que passa por cima dos direitos, dos espaços, meio ambiente e vidas das pessoas para faturar sempre mais um cascalho. Nesse caso, incompetentes e corruptas lideranças de Maceió concessionaram a mineração de sal-gema pela Braskem, da qual o governo federal é dono, numa área ambiental de altíssima importância, potencial turístico e literalmente abaixo das casas destes 60 mil cidadãos e cidadãs.
Imensa falta de lógica só cabe dentro do universo paralelo de uma outra lógica que, infelizmente continua exacerbada e endêmica no Brasil mais do que em outros países, a da corrupção dos representantes públicos eleitos e dos responsáveis pela devida regulação e fiscalização. Sim, corrupção existe em todos os lugares inclusive na Escandinávia, mas aqui ela domina as ações e relações políticas acima dos direitos e deveres de nossa população. A Lava Jato cometeu crimes, foi corrupta e autocrata usando a mentira de que estava lutando contra a corrupção, isso é um fato. Entretanto, também é um fato que esse problema é terrivelmente presente aqui e nos mantém presos nos séculos XX e XIX em pleno século XXI.
O economista Ricardo Henriques comentou corretamente em recente coluna em O Globo que sem um projeto visionário e generoso o pragmatismo exacerbado leva a uma acomodação estagnante. Dessa maneira, aqueles responsáveis pelos nossos problemas e especificamente os que pontuei aqui se cristalizam no poder e nos fazem todos os dias de reféns. Não à toa, lideranças como o deputado federal de Alagoas Arthur Lira emergiram durante as trevas de corrupção e autocracia da era Bolsonaro, e são eles que dizem contra a realidade do sofrimento das comunidades evacuadas e de todos nós cidadãos brasileiros que “a versão..”, veja bem, a versão!, “…de que Maceió está afundando tem que ser jogada na lata do lixo.” Saudades, dos tempos em que o ex-deputado e jornalista Fernando Gabeira peitava o baixo clero e tirava o seu representante da presidência da Câmara dos Deputados. Hoje o baixo clero é o padrão dominante.
Completando o desafio de transformar essa realidade distópica, nos últimos anos sofremos um ataque coordenado das construtoras e imobiliárias aos planos diretores das nossas cidades. Este lobby altamente organizado, persiste em empurrar coisas como a permissão a construção em APAs – Áreas de Proteção Ambiental, o aumento do gabarito, altura de prédios em faixas litorâneas e de rios e lagos, e nas cidades em geral para criar ratoeiras quentes para seus moradores ao mesmo tempo em que buscam dobrar faixas de areia em praias para criar rios de esgoto como o feito pelos ricos carentes de mínima inteligência de Balneário Camboriú.
Mesmo depois de retumbante fracasso em SC, o mesmo foi tentado pelo descarado atual prefeito de João Pessoa, na minha nativa Paraíba, com o único objetivo de aumentar o gabarito dos prédios na área de litoral da cidade, que não permite construções de paliteiros na beira-mar com sua lei orgânica atual, que ainda sobrevive como referência nacional. Enquanto isso a cidade vive uma invasão imobiliária e vulnerabilização ambiental onde os seus moradores originais sofrem a gentrificação por flats que servem como hotéis de airbnb sem nenhuma regulação e tempestades tropicais de 79km/h começam a acontecer de forma inédita danificando gravemente a infraestrutura da cidade e escancarando a falta de preparação a sua nova realidade climática.
Como vem sendo bem apontado pelo jornalista Bob Fernandes, o ataque a nossas cidades não tem limites, consciência e nem pensamento para além do curto prazo de faturar mais cascalho, o que os políticos corruptos adoram pois significa mais dinheiro para eles também naquele já tão manjado ciclo de corrupção, construção e destruição ambiental. No momento em que vivemos o auge da Crise Climática, acabamos de passar pelo janeiro mais quente após o ano mais quente dos últimos 120 mil anos, deveríamos estar passando leis e planos diretores para o controle do clima urbano. Com a obrigação de faixas de vegetação entre todas as novas construções, gabaritos menores e bem distribuídos como em Copacabana no Rio e o que ainda existe no litoral de João Pessoa para maior circulação de ar, tetos verdes e/ou brancos, mais transporte público e espaços verdes obrigatórios por km2 junto a modificação de nossas estruturas para servirem de base a transição energética para longe do petróleo e em direção às energias limpas. Como bem fala a banda Baiana System: “Tire as construções da minha praia. Não consigo respirar.”
De Maceió, João Pessoa e Rio até Valpo, os pobres sempre pagam injustamente o maior preço mas é bom a classe média e os ricos ficarem espertos pois eles também estão em risco, vide o caso de Maceió onde as comunidades evacuadas são de classe média ou as chuvas que têm abalado cada vez mais a afluente Zona Oeste de São Paulo. Ninguém está a salvo. E sim, nós escapamos temporariamente da autocracia de uma nova ditadura, mas ainda precisamos superar a autocracia da corrupção política que continua dominante para fazer o que é preciso para o bem-estar da nossa população.
Junte-se a esta batalha, a luta contra os combustíveis sujos, os quais o atual governo decepcionantemente deu um abraço dos afogados com 600 novas concessões de petróleo, o grande vilão da crise climática, e a urgência só aumenta. Só superando as chagas da autocracia, corrupção e combustíveis fósseis poderemos respirar. Parafraseando Pablo Neruda, um dos residentes históricos de Valparaíso, em seu discurso de recebimento do prêmio Nobel “Em busca da Cidade Esplêndida” em bate bola com Rimbaud:
“Só com uma ardente persistência, união e comunicação conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Assim a poesia não terá cantado em vão.”
Temos muito trabalho pela frente e não temos mais tempo. Não adianta mais só mudar pontualmente as coisas, é preciso transformar a nossa realidade. Saltar da repetição do século XX para o século XXI que queremos é um desafio imenso mas é o único caminho viável. É preciso começar.
.
P.s. Nosso projeto, a Ágora Digital, foi o vencedor do 1o Prêmio da XX Bienal de Arquitetura do Chile em 2017.
Foto abre: paniko.cl
Pedro Henrique de Christo: urbanista climático, presidente do NAVE – Novo Acordo Verde e cofundador do Parque Sitiê na favela do Vidigal, Rio de Janeiro. É professor-visitante de políticas públicas, desenho urbano e arquitetura na Universidad Eafit-Urbam, em Medellín, tendo lecionado também na Harvard University, University of Cape Town, UDP-Universidad Diego Portales e FGV-RJ. Fundador do estúdio interdisciplinar +D, recipiente de múltiplos prêmios internacionais, e colunista da plataforma Fervura no Clima. Mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, onde sua tese inspirou a aula School of the Year 2030@Rio de Janeiro na Harvard Graduate School of Design, foi reconhecido oficialmente como notório saber (famosam scientiam) neste ano de 2023. Paraibano, nascido no Sertão e criado na praia da Zona da Mata, é baseado no Rio de Janeiro.