Hoje, a superação da crise climática passa tanto pela recuperação dos principais biomas do planeta e a descarbonização da economia quanto pela superação do colonialismo climático. Como um todo, já esquentamos a temperatura global em 1,2 C em média, entretanto em certos territórios continentais como o Sudoeste Asiático já houve um aumento entre 2,2 C e 2,4 C (IPCC-ONU). Se continuarmos na trajetória atual de cozinhar o planeta aumentando a temperatura em 3,2 C até o final do século os terríveis impactos dos extremos climáticos que já observamos do Paquistão a África do Sul e no Brasil, como nas enchentes no SE e NE, vão aumentar de forma exponencial e sistêmica causando terríveis desastres humanitários e trilhões de dólares de prejuízo mundo afora. Os maiores estragos, no entanto, acontecerão nos países em desenvolvimento, que concentram 96% das casualidades humanas decorrentes de desastres climáticos (ONU e OCDE) e são muito menos responsáveis pela crise climática do que os países ricos.
Como precisamente colocado durante a COP-27 no Egito por Paulo Artaxo, físico e representante do Brasil no IPCC-ONU, existe um grave problema de justiça climática que vai desde a necessidade de compensação por perdas e danos até o efetivo processo de descarbonização global. Como exemplo, o já citado Paquistão, responsável por apenas 1% das emissões globais de efeito estufa, sofreu neste ano com meses de eventos climáticos extremos que foram desde secas e temperaturas inviáveis, entre 45-48 C ambiente e 65 C no solo, até ter ⅓ do seu território tomado por enchentes na sequência devido ao derretimento do gelo e neve das montanhas da cordilheira do Himalaia.
Um dos principais entraves para um sistema de reparação real é o reconhecimento de responsabilidade, em inglês “liability”, por parte dos países ricos. Pois, uma vez que eles se reconheçam culpados pelo impacto climático nos países mais afetados seriam obrigados a pagar uma conta multi-trilionária em dólares. Devido a dificuldade de se mover processos entre estados nacionais, hoje, é observado o aumento de casos definidores de jurisprudência entre indivíduos e pessoas jurídicas. É notório o processo movido por Saul Luciano Lliyua e a comunidade do lago Palcacocha no Peru na justiça alemã contra a RWE, maior produtora de eletricidade do país bávaro, pelo impacto da mesma no ambiente natural da comunidade contribuindo localmente e globalmente para o derretimento dos glaciares dos Andes e o aumento iminente do risco de uma enchente devastadora para os habitantes da região. Aumentando a complexidade do tema, os países que mais podem se beneficiar com a crise climática são os mais responsáveis pelas emissões históricas de gases de efeito estufa, EUA, Rússia, UE e China, reforçando o processo de Colonialismo Climático.
Entretanto, o que é colonialismo climático?
De acordo com o pesquisador do clima sino-americano Kai Shiwen, vinculado ao MIT e especialista no Paquistão, onde já residiu: “O mundo em que vivemos hoje foi construído por meio de extração e exploração por nações imperialistas, e isso não é diferente em relação a crise climática e emissões de carbono. Para que possamos realmente enfrentar a crise climática, precisamos entender o colonialismo climático e como países ricos do norte emitem a maior quantidade de carbono mas não enfrentam o mesmo nível de consequências que os países do sul global.”
Teoria da conspiração? Infelizmente, não, como na exploração desenfreada da Amazônia contra os povos originários e natureza por agentes de lógica colonial no nosso país, eis aqui um grande e preocupante exemplo global junto às desproporcionais emissões dos países ricos: a corrida pela exploração de petróleo e gás no Ártico (pólo norte) derretido. Como se sabe os principais biomas responsáveis pelo equilíbrio climático do planeta, ou seja, a manutenção das condições básicas de vida para a maioria da população global, são as florestas tropicais da Amazônia, do Congo e Indonésia, os pólos norte (Ártico) e sul (Antártida) e os Oceanos. O que estamos prestes a ver são impactos parecidos com o que vimos no Paquistão só que numa escala global.
Estudo recente da cientista Julie Brigham-Grette da Universidade de Amherst Massachusetts, demonstra que o aumento do nível do mar deve ficar entre 2-3m como resultado do completo derretimento do Ártico, o que levaria a realidades catastróficas para os mais de 3,2 bi de pessoas que vivem a menos de 100 km da costa no planeta (40% da população mundial). Outras pesquisas como as da finlandesa Sanna Kopra do Arctic Institute demonstram como a exploração do Ártico tem acelerado brutalmente o seu derretimento, com a fixação de carbono preto, advindo dos resíduos de combustíveis de óleo pesado (inexplicavelmente permitido somente no pólo norte) de embarcações (que tiveram suas rotas marítimas aumentadas na região em 25% entre 2013-2019) na neve e gelo, o que faz com que o calor seja absorvido ao invés de refletido gerando intenso derretimento. A lógica de mercado está incentivando a disputa pela exploração do Ártico ao invés de regulação multilateral para proteção e preservação das pessoas e áreas mais afetadas da região (MAPA – Most Affected People and Areas) e, consequentemente, de todo planeta.
Atualmente, essa disputa se dá entre Rússia, EUA, Canadá, Dinamarca (Groenlândia), Islândia, Noruega e também a China. Estudos geológicos de 2009 compostos de estimativas questionáveis e ligados ao financiamento da indústria do petróleo defenderam um potencial de exploração de 6 bilhões de toneladas de petróleo cru e 2 trilhões de m3 de gás com a possível construção de 800 km de linhas de transmissão no pólo norte. Hoje, o mais agressivo dos países em busca dessa exploração é a Rússia, que representa mais da metade da costa e população ártica (2 mi de hab). O investimento russo conta com as possibilidades de navegação e exploração decorrentes do derretimento do gelo na região e tem sido realizado na Grande Reserva Natural do Ártico, no noroeste do país, na forma do massivo projeto de petróleo e gás Vostok Oil que até o começo da guerra na Ucrânia contava com investimentos de países membros da União Europeia.
A lacuna gerada pelo abandono desses investidores devido às tensões entre Moscou e os países membros da OTAN foi então rapidamente preenchida pela China. Pois, apesar de liderar a indústria de energia verde mundial, a mesma precisa de muita energia e recursos minerais para suas indústrias pesadas. Entretanto, a China, por não possuir costa ártica, depende da cooperação com estados árticos, principalmente a Rússia, o que leva a crer num delicado contexto para o planeta no médio prazo tanto em relação a crise climática como a tensões geopolíticas na região.
A alternativa mais viável a esse futuro distópico é composta pelas propostas do Conselho Ártico, principal organização de cooperação entre os estados árticos e os povos originários da região que apesar de apenas possuir poder de recomendação realiza um papel fundamental para proteção das pessoas, principalmente os 500 mil membros de povos originários árticos, e do bioma ártico. Entre suas principais propostas estão a (1) criação de rotas marítimas fixas para diminuir impactos, (2) ter unicamente navios e embarcações movidas a energias renováveis para não gerar o carbono preto e (3) expandir áreas de proteção em cooperação entre os povos originários e estados árticos. Apesar da situação catastrófica existe esperança de repetir para proibição da exploração de petróleo e gás no Ártico a arquitetura jurídica feita no acordo de Moratória de Pesca do Ártico Central assinado pelos EUA, Rússia, China, e EUA em 2021, lei criada para proteger o ártico de pesca que ainda não existe.
Chega a ser chocante como existe uma lei para proteger o Ártico da Pesca mas não existe uma lei para proteger o Ártico da exploração de petróleo e gás – muito mais danosa ao meio ambiente e clima. Hoje, EUA, Canadá e Groenlândia (Dinamarca) não permitem a exploração de petróleo e gás apesar do persistente lobby das empresas e políticos da indústria do petróleo, gás e carvão. É fundamental o fortalecimento de acordos internacionais multilaterais de gestão para a região e a ação dos governos para conter a sanha da indústria fóssil.
Assim, a exploração do Ártico representa no nosso tempo um dos principais casos de colonialismo climático no planeta. Os benefícios gerados serão para poucos países, e entre eles estão os principais emissores históricos (e per capita). E esta exploração resultará em impactos climáticos catastróficos para o resto da população mundial, sobretudo os mesmos povos prejudicados pelo colonialismo histórico: os povos originários, o sudoeste e sudeste asiático, África e América Latina.
Como enfrentar esse imenso desafio?
Para resolver tamanho problema é preciso atacar algumas questões específicas, a começar pela questão da liability, ou reconhecimento de responsabilidade no pagamento de perdas e danos. (1) A primeira coisa a ser feita é focar no reconhecimento de sistemas naturais essenciais para o clima; as florestas tropicais, pólos norte e sul e oceanos, como Infraestrutura Natural Climática Global. Dentro desse reconhecimento, os serviços ambientais e climáticos realizados pelos mesmos precisam ser quantificados em termos científicos e monetários vinculados a repasses, principalmente dos principais emissores atuais e históricos, para os países onde esses biomas se encontram para manutenção do bom funcionamento dessas mega infraestruturas naturais globais. Da mesma maneira que o Brasil + países Amazônicos, Congo e Indonésia começam a avançar numa “OPEP” das Florestas Tropicais, o mesmo deve ser feito por parte dos países Árticos, Antárticos e Costeiros no planeta e cobrado conjuntamente pelos países que mais sofrem com os extremos climáticos. Já que não querem pagar pelo que fizeram, os ricos precisam pagar pelos serviços das principais usinas climáticas do planeta.
(2) Foco em oportunidades de capital para transição climática que se fortalecem com a preservação e descarbonização. Hoje na Europa é notório que grandes seguradoras do continente como as alemãs Aviva, Allianz e Munich Re pararam ou limitaram subscrições para novos projetos de petróleo e gás. Isso não se deve só a boa vontade mas também ao risco financeiro que essas operações representam frente ao crescente custo-competitividade de energias renováveis, como é o caso principalmente da energia solar. Existe um grande risco financeiro em projetos de exploração de petróleo e gás desde que os mesmos demoram 16 anos para atingir sua produção máxima. Novos investimentos dessa natureza estão virando apostas perigosas para os bancos também. O que fica claro é que um futuro de energias renováveis ao que tudo indica será também menos custoso e mais lucrativo, além de salvar a imensa maioria da nossa espécie.
No que se refere ao Brasil existe uma onda de oportunidades imensas que precisamos surfar, como colocado pelo economista Márcio Pochmann, ex-presidente do IPEA e atual presidente do Instituto Lula, “É neste inédito contexto internacional de reorientação da agenda de investimento que o presidente Lula aponta para o reposicionamento do Brasil. A recente presença marcante do Brasil na COP 27, bem como na configuração da aliança com Congo e Indonésia na formação da chamada “OPEP do Carbono Florestal” abre importante espaço para um grande ciclo de investimentos verdes no país.”
Junte-se a isso as oportunidades de desenvolvimento da biotecnologia nacional como com o projeto AMIT – Instituto de Tecnologia da Amazônia do cientista Carlos Nobre, que podemos expandir para nossos demais biomas como proposto pelo NAVE – Novo Acordo Verde, e o fato de que “temos um programa de biocombustíveis, sem igual no planeta, e um potencial de geração de eletricidade eólica e fotovoltaica que nenhum outro país possui..; e podemos reduzir nossas emissões em 49% só zerando o desmatamento” como citado por Paulo Artaxo na COP 27 e;
(3) O fato de que os governos precisam liderar o processo de descarbonização da economia global por meio de regulação e incentivos econômicos internos que podem então ser vinculados posteriormente a acordos multilaterais de ação e justiça climática. O que vai virar o jogo da crise climática são iniciativas como o Inflation Reduction Act aprovado nos EUA que injetou U$ 400 bi para realizar a transição climática na economia americana e começar a abrir o caminho para novas e melhores regulações climáticas e ambientais. Não é uma questão de culpar o cidadão e cobrar uma mudança de estilo de vida, isso é ridículo e intelectualmente desonesto. Assim como o é também culpar o tamanho da população global pela Crise Climática como em parte foi pateticamente feito por alguns dos membros do IPCC na COP 27, o que já foi desmentido na literatura científica por uma variedade de estudos sérios sobre o tema. A solução é descarbonizar a economia global enquanto se enfrenta a desigualdade investido-se na educação e inovação verdes e se avança na recuperação dos biomas simultaneamente. Isso já faz total sentido para a grande maioria da população mundial, maior parte do setor privado e tem que se tornar cada vez mais claro para os governos nacionais. O grande desafio nesse processo é vencer a disputa de comunicação, mobilização e influência para realização desse processo contra a indústria do petróleo, gás e carvão e seus lobistas e políticos.
Como sempre comenta meu editor e jornalista climático Matthew Shirts, uma vez perguntado sobre o que mais espantaria um ET que viesse pela primeira vez no nosso planeta, o astrofísico Carl Sagan respondeu que seria o fato de que com 15 TWH (terawatts) de energia disponibilizados anualmente pelo sol na Terra e consumindo menos de 1,5 TWH, a humanidade ao invés de usar essa fonte limpa e facilmente acessível de energia fosse desencavar de maneira caríssima e extremamente danosa para o meio ambiente energia literalmente morta em forma de compostos fósseis como o petróleo, gás e carvão, suprindo suas necessidades no curto prazo mas destruindo as condições básicas de habitabilidade atmosférica para nossa espécie no planeta no médio e longo prazo.
Entretanto, o fator principal que nós especialistas, cientistas, ativistas e empreendedores comprometidos com o Clima e Meio Ambiente precisamos entender é que uma solução ética e tecnicamente correta ao mesmo tempo que economicamente mais viável, como no caso da energia solar comparada a energia fóssil, não significa uma mudança assegurada. O principal desafio está em comunicar o que está acontecendo para que todos entendam, mobilizar os mais diversos grupos para atuarem de maneira inclusiva já que a questão climática afeta a todos e entender que a emergência climática só pode ser resolvida se entendermos que existe ao mesmo tempo uma emergência educacional: para solucionar esta que é a maior crise do nosso tempo temos que preparar nossos cidadãos para o agora e para o futuro pois só assim venceremos esse imenso desafio, como bem colocou o economista Ricardo Henriques em recente coluna no OGlobo.
Para que o jogo vire nessa direção, precisamos fazer política desde a base até os mais altos níveis do poder público. Pois, só assim poderemos ter o papel decisivo do estado realizado com efetividade, representatividade e legitimidade em relação aos verdadeiros interesses e necessidades não apenas de um segmento específico e necro-político do setor privado mas sim da população do nosso e de outros países na superação da crise climática.