Nos últimos seis meses temos vivenciado o crescente impacto da Crise Climática no Brasil e no mundo. Aqui, temos sofrido com chuvas intensas que geram as chamadas flash floods, ou enchentes e deslizamentos relâmpagos, registrando mais de 400 mortes e um prejuízo econômico superior a R$ 3 bi, sim R$ 3bi (CNM – Confederação Nacional dos Municípios e autoridades locais). O desastre mais recente aconteceu no Recife e Zona da Mata pernambucana no mês de maio; em abril vimos o estrago ocasionado em Paraty com recorde histórico de chuvas e o impacto concentrado e mais chocante em Petrópolis em fevereiro; em janeiro, foi Minas Gerais que sofreu mais uma vez com as chuvas depois dos desastres de Mariana e Brumadinho; e em janeiro deste ano e dezembro do passado o sul da Bahia é que foi massacrado pelos efeitos violentos da crise climática com custos humanos e econômicos de larga escala.
Alguns defensores da inação, negadores da ciência ou desinformados irão prontamente afirmar: “mas todos anos acontecem essas chuvas, isso não é novidade”. Um verdadeiro sofismo, ou seja falsa argumentação, pois sim todo ano essas chuvas acontecem mas não nas recentes intensidade e frequência observadas. Vamos aos fatos analisando o caso de cada cidade e região impactadas pela ira da natureza em resposta ao distrato do homem.
No Recife e 24 municípios da Zona da Mata pernambucana, Mata Atlântica, tivemos até agora 106 mortes, 6.650 desabrigados e um impacto infraestrutural imenso internamente e com o fechamento temporário das BRs 101 e 232. A pista ficou interditada entre Recife e João Pessoa (BR 101) nos pontos de Igarassu, Jaboatão dos Guararapes e em Goiana. Essa estrada é importante para economia das duas cidades e da região pois é o principal vetor de transporte entre fábricas das mesmas cadeias produtivas entre as duas áreas metropolitanas.
A intensidade das chuvas foi muito grande para os padrões locais. Nas duas cidades onde mais choveu Olinda (199 mm em 48h comparado a média de maio de 325,8 mm) e Recife (258 mm / 328,9 mm), caíram 62% e 78% de toda a chuva da média histórica do mês em apenas dois dias respectivamente, um padrão de chuvas completamente anormal. Para se ter noção da escala das chuvas, 1 mm corresponde a 1 litro por metro quadrado. Verdade que a ocupação irregular gerada pela falta de opções de moradores que precisam morar perto do seu trabalho também foi um fator, mas longe de ser o principal. São a pobreza e a necessidade de sobrevivência que fazem as pessoas irem morar em lugares como o Córrego do Desastre na cidade de Camaragibe, fonte de imagens chocantes nos noticiários. Mas o principal fator fomentador dos desastres junto a Crise Climática são a inação governamental e o desmatamento da vegetação nativa. De Timbaúba, cidade do meu avô José Francisco Fernandes, até Olinda, cidade histórica, sede da primeira sinagoga das Américas e de um dos melhores carnavais do Brasil (junto ao Rio e Salvador), um forte estrago tem sido a norma.
Em Paraty, tivemos 14 mortes, 125 desabrigados, e impressionantes 655 mm de chuvas em 48h. O recorde foi de estratosféricos 809mm em Araçatiba, em Ilha Grande, enquanto que no continente o nível das chuvas chegou a 694 mm no bairro da Monsuaba. Essas foram as chuvas mais fortes da história de Angra dos Reis e Paraty. Nesse mesmo período na Baixada Fluminense as chuvas também foram intensas, principalmente em Nova Iguaçu onde a água chegou a invadir hospitais e Belford Roxo, com 226 mm em 2h. Já no Rio, no bairro do Jardim Botânico, um dos mais ricos da cidade, o nível de alagamento nas suas ruas principais chegou a 1,10m.
Observamos chocados a tragédia ocorrida em Petrópolis. Foram 232 mortos e 1.117 desabrigados advindos de chuvas intensificadas num curto período de tempo, 259,8 mm em poucas horas, o maior volume de chuva em 90 anos na cidade. Resultaram 3.200 ocorrências por deslizamento, R$ 78 mi de prejuízo imediatos só para o comércio, 32,4% dos estabelecimentos comerciais destruídos ou alagados e um prejuízo de R$ 665 mi no PIB da cidade de acordo com a FIRJAN (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro).
Já em Minas Gerais, o triste resultado foi 26 mortes, 9.049 desabrigados, 55.461 desalojados e 422 municípios impactados. A média climatológica do mês de fevereiro foi superada em 15 dias com algumas áreas chegando a 220% da média do mês. Os alarmes e gatilhos de traumas relacionados aos desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho deixaram a população local em pânico e o desequilíbrio do clima gerou até chuvas de granizo na região para surpresa dos moradores.
No sul da Bahia, junto às irreparáveis perdas de vida humana, tivemos ao que tudo indica o maior prejuízo estrutural e econômico. Foram 26 mortes, 30.915 desabrigados, 62.731 desalojados, 715.634 mil impactados e 166 municípios afetados com prejuízo de R$ 1,65 bi (CNM – Confederação Nacional dos Municípios). De acordo com os dados divulgados pela CNM, o setor agrícola foi o que mais sofreu perdas, com prejuízo em torno de R$ 591,9 milhões, seguido pelo setor de habitação com R$ 495,3 milhões e completando esse triste pódio, o setor de obras de infraestrutura, que inclui pontes, estradas, ruas, avenidas e drenagem com perdas de R$ 351,6 milhões.
Fica claro que os padrões de chuva estão se intensificando fortemente como resultado da Crise Climática e gerando gravíssimos custos humanos, infra estruturais e econômicos. Como colocou recentemente em entrevista o cientista Paulo Artaxo, professor da USP e representante do Brasil no IPCC-ONU, não só esses eventos são fruto da crise climática assim como “Outros eventos climáticos extremos são uma certeza.”
Esses eventos específicos de flash flood que geram graves riscos geológicos além das enchentes são amplificados pela Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) e o desequilíbrio gerado na mesma pela mudança negativa do clima, o que tem gerado inclusive o aumento de incidência de ciclones tropicais no Brasil. Como padrão comum temos observado uma maior incidência concentrada na região da Mata Atlântica, do NE e SE. Frente a essa montanha cumulativa de desastres e evidências, nosso povo tem sofrido mais ainda pela total incompetência e descaso da presidência e governo federal. Recorrentemente, tem sido o apoio solidário entre governadores que tem permitido aos territórios impactados responder minimamente a esses extremos climáticos.
Está mais do que na hora de sairmos desse modus operandi de enxugar gelo decretando situação de emergência ou estado de calamidade pública pontualmente com cada vez maiores prejuízos e respondendo com medidas paliativas e insuficientes como o Aluguel Social, em torno de R$ 1.000 para as famílias afetadas como no caso de Petrópolis, ou cobrindo com plástico áreas de risco como observado por todas essas tragédias. Precisamos de soluções sérias e efetivas, não de paliativos demonstrativos. É urgente nos antecipar entendendo que já vivemos uma situação de emergência, como muitos convém chamar, de Emergência Climática.
As principais medidas para nos adaptar, resistir e superar esse imenso desafio nas nossas cidades e territórios passam essencialmente por uma transformação urbana que foque na integração, sustentabilidade e resiliência de nossas cidades.
No que se refere a integração, precisamos tratar os moradores de áreas informais, ou favelas, como cidadãos com direitos iguais aos demais, começando pelo mapeamento de áreas de risco e próprias para habitação. Aqueles em situação de área de risco devem ser removidos para outras áreas onde habitação de interesse social precisa ser desenvolvida e aqueles em áreas habitáveis precisam ter a concessão de títulos de propriedade, ATHIS – Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (acompanhamento de arquitetos e engenheiros do setor público para adequação das obras autoconstruídas [84% no Brasil] a padrões de segurança, saúde e sustentabilidade urbanos) e os investimentos necessários em infraestrutura urbana e equipamentos públicos realizados para integração à cidade formal.
Fundamental ressaltar a importância da CAIXA, seus arquitetos e engenheiros, nesse processo tanto na incorporação de seu conhecimento para melhoria do Programa Minha Casa Minha Vida, vinculando o MCMV ao Plano de Habitação e Planos Diretores dos Municípios, assim como na luta para que o programa e a própria CAIXA cumpram sua função originária e social de atender as famílias na faixa de renda 1, até R$ 1.800, que simplesmente foi extinta pelo péssimo e sádico governo Bolsonaro. Tive a oportunidade de palestrar para e conversar com os mesmos em Brasília no encontro anual da ANEAC – Associação de Engenheiros e Arquitetos da CAIXA, e sua experiência e visão precisam ser incorporados a nossa política urbana o mais rápido possível para construção de um futuro urbano viável.
Em relação à política pública de concessão de títulos de propriedade é essencial evidenciar que a mesma é uma política pública de Pareto, ou seja, não há perda de eficiência para ganho de equidade na mesma. Em bom português, ninguém perde capital para que as pessoas das favelas recebam seus títulos. Ninguém no Leblon perderá dinheiro se títulos forem concedidos para moradores do Vidigal. Pelo contrário, será injetado crédito na economia, pois as pessoas poderão usar suas propriedades como colateral para obtenção de crédito e assim investir em seus negócios gerando fluxo de capital, algo que o Brasil precisa muito.
Outras medidas fundamentais junto a diminuição das emissões para estancar o estrago são o desenvolvimento de programas de reflorestamento urbano, onde a natureza seja projetada e desenvolvida como infraestrutura. Um projeto de desenho de território e paisagem é urgente para as cidades da Mata Atlântica, tanto para resiliência a esses eventos extremos de chuvas como para contenção de umidade e controle do clima nos extremos climáticos de ondas de calor que vão ocorrer cada vez mais no verão como observado agora na Índia e no Paquistão. Junto a essas iniciativas de integração, sustentabilidade e resiliência precisamos avançar na aplicação de modelagem 4D (iterações de impacto de fenômenos diversos em modelos 3D no tempo = 4D), para que possamos nos antecipar a diferentes cenários de eventos climáticos extremos com efetividade. Ambas propostas já foram citadas aqui no @Fervura no artigo, “A Natureza como Infraestrutura Urbana”.
Por fim, se é nas cidades e municípios rurais que as pessoas mais sofrem os impactos da Crise Climática, Pandemias e Crises Econômicas, precisamos discutir o Pacto Federativo para que as mesmas tenham mais recursos e mandatos políticos para agir onde o problema acontece sem depender tão fortemente dos estados e principalmente do governo federal, que concentra demasiado poder e pode ser ocupado por incapazes corruptos e cruéis como no governo Bolsonaro. A Crise Climática já está aqui no Brasil e também no mundo e o custo humano, econômico e ambiental de não agir se prova cada vez maior do que fazer o inevitável necessário. Não temos tempo a perder, mas felizmente temos como vencer, só precisamos agir.