“Pedro… tu viene?”, perguntou meu amigo Claudio Magrini, diretor do departamento de Território e Paisagem da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidad Diego Portales em Santiago no Chile. “Aún va a pasar?” lhe perguntei de volta me referindo ao seminário internacional do qual estava previsto participar junto a professores de outros países pelos próximos dez dias. “Se tu viene, lo hacemos, pero tengo que te decir que no hay garantiza de que tu avión va a aterrizar en Santiago. Pero parece que hasta mañana sí.” “Por supuesto, mañana estaremos juntos”, lhe respondi.
A razão desse diálogo eram os protestos em massa que haviam tomado conta do país, mas principalmente de Santiago e Valparaíso, as duas cidades e áreas metropolitanas onde iríamos trabalhar. A causa do levante popular foi o esgotamento da população contra as cada vez mais severas medidas neoliberais relacionadas à privatização da previdência, gestão dos recursos hídricos (uma causa ambiental) e o aumento do custo do transporte público.
Havia à época uma onda de suicídio em massa de aposentados que com sua previdência privatizada, nos moldes do que queria o ministro da fazenda Paulo Guedes no Brasil, haviam visto seus rendimentos caírem de USD 800 para USD 200 em questões de meses. A população já estava revoltada por isso e devido aos racionamentos de água constantes e alguns dias antes do nosso seminário o estopim aconteceu quando alunos secundaristas se recusaram a pagar a nova taxa de transporte do metrô e foram espancados pela polícia local, os carabineros, em Santiago.
Logo após cruzar os Andes, uma cena sempre memorável, a comissária nos informou que o espaço aéreo chileno havia sido reaberto mesmo com a continuação dos toques de recolher das 20h até às 6h ditados pelo autoritário e neoliberal presidente Augusto Piñera para conter com uso ilegal da força os protestos. Cheguei recibido sempre pelos olhos desconfiados dos agentes da alfândega chilena pelo momento da vinda e pela coincidência que havia acabado de regressar há 1 semana e meia de um período de trabalho em Seul e Hong Kong, sendo que havia ficado durantes 2 dos principais dias de protesto pela democracia na cidade-estado chinesa.
Quando o taxista ouviu o endereço para onde iria, “Purisima xx, comuna Recoleta, Santiago”, o estúdio de Cláudio onde o seminário seria realizado com grande ato de liderança sua, pois a universidade havia sido fechada devido ao toque de recolher, ele olhou para mim e falou “Santa Madre, tu te vas al ojo del huracán, tienes certeza de esto?”, ao que respondi, “Es para allá que yo tengo que – y quiero – me ir.” para sua incredulidade. O que se seguiu foram 10 dos dias mais incríveis que vivi na minha vida onde realizamos o seminário sobre meio ambiente, democracia e desenho urbano das 9h até às 17h e todos os dias nesse horário, embalados por “Bella Ciao (hino dos protestos), nos dirigimos a Plaza Italia, rebatizada de Plaza de La Dignidad, para protestar por uma nova constituição e por um estado de bem-estar social digno para o povo chileno junto com nossos alunos e a população em geral, em sua maioria jovens e famílias ao contrário do que anunciado na mídia conservadora local e no Brasil.
Aquela organização naquela escala e com a agenda clara de uma nova constituição eram as demonstrações populares mais inspiradoras que já havia visto e participado. Devido a incrível proximidade do estúdio de Cláudio ao epicentro dos protestos e sua rede e de outro amigo, Oscar “Pelayo” Zuniga, histórico ativista do Partido Comunista contra a ditadura de Pinochet e exilado político chileno, ali havia se tornado uma das bases de organização das lideranças dos protestos onde pude conviver e colaborar com muitas delas numa verdadeira fraternidade latinoamericana. Como conversava com Pelayo, víamos ali brotar uma semente de mudança para a América Latina e dependendo da continuação dos protestos uma vitória imensa contra o Neoliberalismo. Nunca tomamos tantas bombas de gás-lacrimogênio, todas injustificáveis e com a intenção de provocar reações violentas, mas esse fora um pequeno preço para apoiar algo tão verdadeiro e grandioso como vimos no maior protesto da história da América Latina quando 1,1 milhão de pessoas tomamos juntas a Plaza de la Dignidad no começo de novembro de 2019.
A eleição de Gabriel Boric, presidente eleito mais jovem da história do Chile aos 35 anos e líder estudantil que já cumpriu dois mandatos como deputado, culminou a vitória histórica dessas grandes manifestações populares que tomaram o Chile de outubro de 2019 até as medidas de isolamento necessária contra o coronavírus e que já haviam resultado na atual Assembleia Constituinte liderada pela indígena Elisa Locon, que tem coordenado a elaboração da nova constituição para o país, derrubando a ainda vigente desde 1980 que fora constituída na ditadura de Pinochet. As grandes mudanças que essas demonstrações em massa e a nova constituinte propuseram e agora estão alinhadas para fazer acontecer: o fim do neoliberalismo no Chile junto a criação de um novo estado de bem-estar social e uma agenda ambiental como parte central das ações do governo federal. Como bem colocou o próprio Boric:
“Temos um compromisso profundo no enfrentamento da crise climática, para assegurar o direito à água, para que não exista mais zonas de sacrifício no país.”
A gestão nos recursos hídricos no Chile é privatizada, o que tem gerado graves problemas ao longo da história como longos racionamentos para a população enquanto a provisão de água se manteve para empresas privadas, principalmente mineradoras. Junto a garantir o direito humano à água, a criação de um Fundo Soberano de Adaptação à Mudança Climática e um Estratégia Nacional de Hidrogênio Verde são os principais projetos do seu programa de governo. A garantia à água e ao saneamento com enfoque na proteção e recuperação de ecossistemas e gestão participativa e democrática dos recursos hídricos se dará de forma gradual, mas representará uma imensa mudança acerca de como funciona o sistema hoje, um dos grandes símbolos da desigualdade no país.
Já o Fundo Soberano será a grande base para enfrentar a crise climática financiando o que está sendo chamado de “Estratégia de Adaptação Transformadora da Crise Climática”, programa esse que será desenvolvido para atender as especificações de cada região administrativa do país e seus biomas. Outra parte fundamental desse programa junto ao fundo se dá sobre o desenvolvimento da infraestrutura e cadeia produtiva da Economia Circular no país. Para tal, será criada inclusive uma Lei Marco da Economia Circular e Gestão de Resíduos que foca não só aumentar os níveis de reciclagem como também tornar mais responsáveis as empresas pelo controle de geração de lixo e resíduos na fonte.
No que se refere ao setor de energia, a proposta do programa de governo de Boric se divide em 3 pontos principais. Primeiro, desenvolver o processo de descarbonização com três medidas de curto prazo: (1) incorporar sistemas de armazenamento em distintas etapas desde a geração até o consumo, em fontes de geração variável passando pelo sistema de transmissão de maneira a evitar congestões e com o crescimento da proporção de uso de energias variáveis. (2) Segundo, incentivar que os grandes consumidores, empresas paguem por parte importante do custo de armazenamento de acordo com quanto maior forem suas demandas e (3) A reparação ambiental das “Áreas de Sacrifício” para produção de energia, prioritariamente as que abrigam ou abrigavam usinas de carvão.
Outro ponto essencial do plano de governo na área energética a médio e longo prazo é o foco em substituir os combustíveis fósseis em suas maioria por uma Estratégia Nacional de Hidrogênio Verde. Dentro desta estratégia serão criadas linhas de crédito e programas para o fomento de cooperativas e empresas energéticas regionais com foco no desenvolvimento econômico local e sustentável, ou seja, vão ser privilegiadas a produção e empresas menores em competição ao cartel energético chileno.
Vale ressaltar também que novos marcos legais de proteção à biodiversidade no continente e nos oceanos estão sendo propostos, o que significa uma grande mudança na regulação neoliberal existente que historicamente tem incentivado a degradação do meio ambiente chileno. Como disse Gabriel Boric logo após sua vitória ser confirmada,
“Se o Chile foi onde surgiu o Neoliberalismo, também será onde fica a sua tumba.”
Que ele e esse bravo povo chileno consigam realizar essa transição para um Estado de Bem-estar Social assim como enterrar também as práticas associadas ao Neoliberalismo que tanto destroem e prejudicam o meio ambiente na América Latina e no mundo. Vencer a Crise Climática está diretamente ligado a vencer o Neoliberalismo. Que nós no Brasil e demais povos no mundo que sofrem com essas chagas sigamos o mesmo caminho. E para os falsos profetas que dizem que tudo o que de fato aconteceu no Chile só aconteceria em utopias ou seria algo insustentável e que o mesmo se aplica a superação da Crise Climática, digo o mesmo que dizia aos risos para nossas companheiras e companheiros no Chile, “La revolución es romántica.”
Pedro Henrique de Cristo, Coordenador do NAVE-PT, Polímata, é professor-visitante de políticas públicas, desenho urbano e arquitetura na Universidad Eafit-Urbam, em Medellín, e na Universidad Diego Portales (UDP), em Santiago. MPP’11 Harvard
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