A injustiça ambiental e o caráter alarmante são as marcas do segundo volume do 6o relatório do IPCC da ONU sobre a Emergência Climática lançado no começo do mês e focado nos impactos, adaptação e vulnerabilidade por todo o mundo. O relatório, além de apontar que nós estamos muito piores do que esperávamos, demonstra que 3,6 bi da população mundial, ou seja 46%, já vive em áreas de alto risco climático; 33% estão expostos a ondas de calor que podem levar a morte (o percentual previsto na trajetória atual para 2100 é entre 50-70%) e a injustiça ambiental e seus impactos são rampantes, principalmente entre os mais pobres. Estes são os menos responsáveis historicamente por essa situação pois emitiram muito menos gases de efeito estufa (ghg) desde o princípio da revolução industrial.
No que se configura como um verdadeiro Apartheid Climático (Verkooijen, P), entre 2010 e 2020, quinze vezes mais pessoas morreram devido a enchentes, secas e tempestades em regiões muito vulneráveis do Mundo Majoritário, ou seja, África, Sul da Ásia, América do Sul e Central do que em outras partes do mundo. Isso ocorre enquanto os países ricos não cumprem suas promessas de financiamento para adaptação como reparação histórica e sorrateiramente insistem em negociar acordos climáticos de emissão por níveis absolutos e não per-capita como deveria ser. Enquanto um canadense e um americano emitem 23.8 e 20.4 toneladas de CO2 por ano respectivamente, um indiano emite 2.7, um nigeriano 2.8 e um brasileiro entre 7.0 (incluindo o descontrolado desmatamento por queimadas dos anos de destruição bolsonaristas que elevam o indicador de 2.5 para o valor citado).
Como colocado por Hans-Otto Pörtner, co-chefe do grupo de trabalho que produziu o relatório “A ciência é inequívoca… nós estamos vivendo aquele futuro cenário de pesadelo que os cientistas no século XX nos alertaram sobre. Qualquer atraso numa ação global conjugada vai perder uma janela breve e rapidamente se fechando para assegurar um futuro vivível.” Já o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, descreveu o relatório como um “atlas do sofrimento humano”. Ambas colocações são muito duras mas nos trazem avanços dentro de uma esperança realista, como diria nosso mestre Ariano Suassuna.
Primeiro, hoje a ciência é inequívoca e cientistas estão juntos com ativistas e líderes políticos na advocacia por mudanças, o que foi um grande dilema entre os pais do relatório os cientistas Bert Bolin, sueco, a favor da abstenção da advocacia, e Mostafa Tolba, egípicio, que já havia percebido a necessidade de engajar com os fazedores de políticas públicas e políticos; segundo, denominar o relatório de um “Atlas do Sofrimento Humano” é uma colocação trágica mas muito importante porque para se resolver um problema precisamos de fato saber onde e como ele acontece, e; terceiro, como bem colocou a Dra. Helen Adams, do King’s College e autora líder do relatório “Sim, está muito claro no relatório que sim, a coisa está feia, mas, atualmente, o futuro depende de nós e não do clima.” Apesar de tudo, nós ainda temos a agência para evitar o maior e mais injusto desastre da história da humanidade, só precisamos agir de forma decisiva até 2030 porque senão será tarde demais.
Outros fatores marcantes do relatório do WGII do IPCC (acrônimo para grupo de trabalho dois) foram deixar claro que soluções mirabolantes de terraformação, reengenharia do clima da terra, como captura de carbono entre outras tendem na verdade a piorar ainda mais a emissão de ghg (gases de efeito estufa) devido a consequências não-previstas que começam a ser observadas. É um importante ataque ao que ficou conhecido como “maladaptação”, uma das principais tentativas de atrasar a verdadeira ação climática por parte da indústria de petróleo, gás e carvão, junto ao patrocínio da desinformação e negacionismo.
Já temos a melhor tecnologia de todas, os sistemas naturais, e sendo assim precisamos conservá-los e fortalecê-los como infraestrutura urbana, rural e territorial/florestal. Manter a resiliência numa escala global depende da conservação de 30% a 50% do solo, água potável e oceanos da Terra de acordo com o IPCC. Na contramão do que a classe política no poder hoje deseja realizar no Brasil assegurando a destruição das nossas florestas com a aprovação da PL 191/20 que pretende liberar a mineração em áreas de reserva na Amazônia e pode resultar na perda de uma área maior que a Inglaterra (160.000 km2), precisamos aumentar fortemente as áreas de conservação no planeta. O belo e importantíssimo Ato pela Terra, realizado ontem em Brasília e liderado por Caetano Veloso mobilizando a sociedade civil de forma brilhante, não podia vir em melhor hora. Hoje, menos de 15% do solo, 21% da água potável e 8% dos oceanos são áreas protegidas, e algumas regiões como nossa amada e maltratada Amazônia, transitaram de armazenar carbono para emiti-lo.
Amazônia esta que está mais próxima de seu ponto de não retorno como demonstra pesquisa publicada recentemente no jornal Nature Climate Change pelos pesquisadores Niklas Boers da Technical University of Munich na Alemanha e Tim Lenton da Universidade de Exeter no Reino Unido. Estudo este superior as modelagens realizadas, pois se baseia no exame de dados de satélite referentes a quantidade de vegetação em mais de 6,000 células de uma mesma grade pela Amazônia intocada entre 1991 e 2016. O mesmo estudo demonstra, por meio do processamento dos dados dentro de uma metodologia de análise estatística inovadora, que mais de 75% da floresta intocada perdeu sua estabilidade sistêmica desde o ano 2000. O que significa que agora leva mais tempo para se recuperar de secas e queimadas naturais. Junte-se a isso o fato de que as áreas mais afetadas são aquelas próximas a rodovias, áreas urbanas, de agricultura e queimadas e se torna ainda mais urgente frear a destruição na Amazônia ao nível de desmatamento zero.
Por fim, é apontada uma estratégia no relatório do IPCC que já é defendida por desenhadores urbanos e de território-paisagem há muito tempo, que o mais forte ponto de entrada para aglomerar apoio e realizar mudanças de adaptação e transição efetivas às mudanças climáticas são as cidades. Isso se dá pelos impactos que as mesmas vão sofrer cada vez mais, assim como porque é nelas que vivem a maioria das pessoas no mundo inteiro e por estarmos vivendo a maior migração urbana na história, principalmente na África e Sul da Ásia, duas das áreas mais impactadas pela Emergência Climática. Finalmente, o relatório cita em sua maior parte a necessidade de adaptação sem especificar muito o “como” mas é evidente que a porta de entrada para a transição climática e aumento da sustentabilidade nas cidades, territórios e nações é a resiliência frente a escalada de extremos climáticos e os impactos destes sobre a população em geral.
É também inevitável endereçar que o relatório do WG II do IPCC – ONU foi apresentado em meio ao começo da guerra na Ucrânia. Uma violação da soberania de outro país pela Rússia e um fracasso da diplomacia e política da mesma, do Ocidente e das lideranças ucranianas. O que isso quer dizer? Que o que já era difícil, realizar a transição climática, ficou ainda mais complicado mas ainda possível. A certeza é que estamos num momento de decisão: ou substituímos nossa matriz energética por uma sustentável que beneficie também a geopolítica dos países mais interessados na paz do que na guerra ou teremos o último grande boom dos combustíveis fósseis, petróleo, gás-natural e carvão, junto a uma escalada militar que continue dependente de energia suja, petróleo, gás, carvão e energia nuclear, no pior momento possível para isso acontecer na nossa história.
Em meio a esse desafiador contexto, o papel do Brasil mais do que nunca é assumir a liderança da transição climática e buscar a integração dos países por meio de projetos e iniciativas concretas que sejam capazes de desenvolver e fortalecer dinâmicas pacíficas. Uma coisa é certa, a Emergência Climática não vai nos dar um cessar fogo e enquanto os países do norte continuam na sua lógica de acumulação de poder e riqueza a qualquer custo nós do Mundo Majoritário temos que cuidar de nós mesmos e do mundo pois a conta maior a ser paga continuará caindo sobre nós independente da responsabilidade sobre isso.
Precisamos resolver nossos problemas sem esperar o financiamento dos países ricos, ainda mais agora com outra militarização das relações internacionais e seus custos decorrentes, e assim apontar o caminho que o mundo deve seguir. Um grande desafio mas sem dúvida alguma uma grande oportunidade de desenvolvimento e cooperação entre nós, ou como convém chamar na cooperação sul-sul. Hoje, a superação da Emergência Climática é não só uma urgência transnacional ela pode, e deve ser também, um caminho para por meio da integração dos países pela superação de um desafio comum alcançar a paz. Diferentemente do que colocado pelo grande escritor russo Leon Tolstoy em Guerra e Paz, de que “O tempo e a paciência, são os dois maiores guerreiros”, as gerações passadas nos colocaram numa situação onde precisamos de urgência e impaciência construtiva, a nós só cabe acertar, e rápido.
Pedro Henrique de Cristo, Coordenador do NAVE – Novo Acordo Verde, polímata, é professor-visitante de políticas públicas, desenho urbano e arquitetura na Universidad Eafit-Urbam, em Medellín, e na Universidad Diego Portales (UDP), em Santiago. MPP’11 Harvard Twitter: pedrohdcristo Instagram: @pedrohdcristo