Durante anos, me orgulhei de ser carnívora. Nasci no sul, onde as quitinetes podem até não ter banheiro mas têm churrasqueira, e me jactava de sequer precisar da grelha: para mim, a carne crua do tartar era o melhor prato. Até o dia em que fui pega com a boca na morcilla: alguém me contou que o planeta estava em chamas e que o consumo de carne era um dos principais responsáveis pelo aquecimento. Fui conferir e era verdade: cerca de 80% do desmatamento ocorre para dar espaço à pasto ou plantar espécies que virarão ração para gado. Sem falar no famoso pum de vaca, carregado de gás metano. Como uma viciada, sofri mas acabei largando o cachimbo da carne. Informei aos meus familiares que seguiria fritando bifes para eles (antes de mais nada, abaixo a ditadura), mas aquilo não cruzaria mais meus militantes lábios.
Vim bem até a semana passada, quando a vida me presenteou com um pacote de angústias: excesso de trabalho, problema de saúde na família e um presidente que parece não saber para quê serve uma vacina. Ao passar cabisbaixa pelo restaurante argentino que fica no meu bairro, não desviei o olhar, como vinha fazendo. Entrei e pedi uma mesa no fundo, bem escondida. Ali, à meia luz, pitei um bife ancho, me consolei no colo de uma proteína. O planeta que me perdoe: às vezes a carne também tem suas recaídas.
Giovana Madalosso é colunista do Fervura todas as terças. É autora dos livros Suíte Tóquio, Tudo pode ser roubado e A teta racional.