Fervura no Clima e uma ilustração de turbina eólica.

#FervuraNoClima

INSPIRAÇÃO PARA ENFRENTAR O AQUECIMENTO GLOBAL

Fervura no Clima e uma ilustração de usina termelétrica sendo desativada.

O Relógio
do Clima!
SAIBA MAIS

Tarifa Zero no transporte transforma as cidades


Giancarlo Gama com Andréia Myllena e Karoline Belo – Coletive Cidades 

 

Era uma tarde, por volta das 14h. Eu havia dirigido 4 horas para chegar até o destino. Fazia uma semana que eu estava no Brasil, e, após concluir meu mestrado em Políticas Públicas em Oxford, fui realizar um trabalho de campo em uma das cidades brasileiras que implementam transporte público completamente gratuito. Até aquele momento, tudo que eu sabia sobre tarifa zero, ou eu tinha lido em algum lugar, ou eu tinha ouvido falar. Mas ali eu vivi, pela primeira vez, o transporte público de graça. E a partir daquele momento, tive a certeza que aquela seria uma ferramenta fundamental para um novo presente e futuro da nossa geração. Entendi que ou repensamos a forma como nos organizamos e locomovemos nas cidades ou vamos nos entregar para a fervura climática. Por isso, tarifa zero é urgente.

 

A tarifa zero diz respeito ao transporte coletivo em que o passageiro não custeia o serviço. Um transporte público que é realmente público. Quem “paga esse almoço” – como gostam de mencionar os elitismos pseudo teóricos da bolha neoliberal brasileira, que vê todo direito social como custo e não investimento – é a gente. Na verdade, já estamos pagando há bastante tempo. O problema é que pagamos o almoço e só comemos as sobras, enquanto a elite do país come o salmão. O sistema de transporte público, que beneficia todas as pessoas na sociedade – de quem tem carro a quem não tem – é financiado, hoje, pelas pessoas mais pobres. Isso aprofunda as desigualdades, gerando uma sobrecarga para quem já enfrenta dificuldades socioeconômicas. Por isso, falar de tarifa zero é urgente.  

 

Essa agenda é histórica no Brasil. Não só porque foi a pauta que deu início às Jornadas de Junho de 2013, tendo desdobramentos políticos sentidos ainda hoje, mas também por ser discutida no país desde 1990, quando a então Prefeita Luiza Erundina implementou a política na cidade de São Paulo. O transporte público, fruto também da luta dos movimentos sociais, hoje é um direito básico constitucional, assim como saúde e educação. Agora, em 2024, o Brasil é líder mundial na implementação da Tarifa Zero no transporte público, com 117 cidades. No entanto, muitas perguntas surgem quando nos deparamos com esse dado. Por que tantas cidades no Brasil fazem essa política? Como elas a tornam viável frente à falta de recursos? Quais são os impactos dessa política? Como ela pode ajudar no combate à crise climática? 

 

Foram essas e outras perguntas que guiaram a minha tese de mestrado em Políticas Públicas na Universidade de Oxford. Decidi explorar a pauta da tarifa zero sob o olhar das políticas públicas. Com seriedade e pragmatismo, para complementar o trabalho sério que o movimento social e pesquisadores brasileiros já têm feito há bastante tempo. E com coragem, para confrontar o elitismo brasileiro pseudotécnico que coloca toda política social e de combate às desigualdades como cara e inviável. 

 

Eu concentrei meus esforços para compreender como  cada uma das 114 cidades – número de experiências em 2023 que já é maior em 2024 – que implementaram essa política. Fui a cada portal da transparência, a cada lei orçamentária e informação pública sobre a política naquele território. Fiz entrevistas com diversos gestores públicos e tomadores de decisão sobre a tarifa zero nessas cidades. Realizei trabalho de campo em 4 delas, assim como em Tallin, na Estônia, referência mundial em transporte público gratuito.E se eu já estava fascinado e surpreendido com tudo o que eu tinha ouvido e lido sobre a política, depois desse processo, saí ainda mais obstinado pela pauta. 

 

Fazer transporte público gratuito tem impactos profundos e estruturantes para as cidades. O primeiro deles é o aumento no número de pessoas usando o transporte público. A média de aumento nesse número é de 147%, de acordo com dados coletados no meu trabalho de mestrado. Tiveram cidades que aumentaram em mais de 4x o número de pessoas se locomovendo por meio do transporte coletivo, como a cidade de Parobé, no Rio Grande do Sul e Lins, em São Paulo. Frente a crise no sistema de transporte público no Brasil e a crise mundial de desvalorização do transporte coletivo como meio de locomoção, a tarifa zero é fundamental para resgatar o uso do transporte público nas cidades e consequentemente construir cidades melhores e acessíveis para todas as pessoas. 

 

Ainda, cidades que implementaram tarifa zero foram impactadas no seu desenvolvimento econômico. Isso porque a política aumenta a empregabilidade (em torno de 3,2%) bem como a arrecadação de tributos, como ISS por exemplo (Rodrigues et al., 2024). Ouvi dos gestores públicos que é notável o aumento da circulação no comércio local. Além disso, há a atração de novas empresas para a cidade, uma vez que a empresa não precise arcar com o custo parcial do auxílio-transporte, há uma vantagem competitiva com relação às outras cidades da região. 

 

Para além desses dois fundamentais efeitos, a tarifa zero tem impactos climáticos e de combate às desigualdades sem precedentes. Ela tem ajudado a reduzir as emissões de gases do efeito estufa, das cidades pequenas às grandes, como constatado em São Caetano do Sul e Luziânia. Seja porque pode potencialmente reduzir a quantidade de carros circulando na cidade, como relatado por gestores públicos, ou fazer com que as pessoas migrem de trabalhos em setores altamente emissores para setores com menor emissão, reduzindo o trabalho nesses setores e consequentemente as emissões, como demonstrado em estudo recente publicado pela FVG (Rodrigues et al., 2024). Esse conjunto de fatores, somados à nova organização do espaço urbano proporcionada pela implementação da tarifa zero, são cruciais para pensarmos como as cidades, das menores a maiores, podem reduzir as emissões nos transportes – responsável por 24% das emissões globais de CO2 (WRI, 2016). 

 

Ainda, a tarifa zero é uma ferramenta central para combater a mobilidade racista que impera no contexto urbano brasileiro (Santana, 2023). Esse conceito diz respeito à organização racista do sistema urbano no Brasil, que se deu no espraiamento deliberado das pessoas pretas e pardas para as periferias e favelas, longe do acesso a “cidade” e com barreiras financeiras para o seu acesso. Na prática, a mobilidade desigual e racista criou um sistema de transporte público em que o passageiro precisa pagar para ter acesso à cidade. E se é pago, exclui as pessoas pobres. Em termos quantitativos, sabe-se que 75% dos mais pobres no Brasil são pessoas negras (IBGE, 2019). Com o transporte público gratuito, esse controle social de herança racista e fomentador da desigualdade, que é a tarifa no sistema de transporte público, deixa de existir, concretizando o direito à cidade e amenizando os impactos da mobilidade racista que guia o nosso país.

 

Não bastassem esses fatores para justificar a viabilidade e potencialidade da política para mitigar diversos dos nossos problemas sociais, a tarifa zero é barata para se implementar e com excelente custo benefício. Com a minha tese, descobri que 90% das cidades que implementam tarifa zero gastam menos de 2% dos seus orçamentos anuais fazendo a política. Isso é menos do que elas gastam transportando lixo, por exemplo. Esse valor significa, em média, R$0,12 centavos por dia, por habitante, para fazer a política viável. Gestores relataram, para mim, que a viabilidade da tarifa zero acontece pelo planejamento da despesa no orçamento e posicionando o transporte público como um serviço prioritário. Em outras palavras: fazer tarifa zero é barato e, na prática, depende de vontade política. Respondendo as perguntas que instigaram a minha pesquisa, concluí que: 

 

A Tarifa Zero é uma ferramenta fundamental para o presente e o futuro possível das cidades no Brasil e no mundo. 

 

O “novo velho mundo”, das mudanças climáticas, da crise do capitalismo tardio e das desigualdades sociais, vistas como intrínsecas ao nosso país – especialmente, as desigualdades raciais -, exige respostas urgentes dos governos para garantir uma existência possível neste planeta. A tarifa zero é uma delas. Por isso, fundamos o Coletive Cidades, organização social que quer transformar as cidades brasileiras, especialmente as menores de 100 mil habitantes, em territórios mais justos e sustentáveis por meio da incidência política, conhecimento e suporte técnico. Visamos influenciar a agenda de políticas públicas das Prefeituras na área de mobilidade e clima, dando o pontapé inicial com a tarifa zero no transporte público. Nosso propósito é fazer com que mudanças discutidas no cenário nacional e internacional aterrizem nas cidades brasileiras. No próximo ano, levaremos a pauta da tarifa zero aos quatro cantos do Brasil, com o apoio de políticos, ativistas, lideranças comunitárias e sociedade civil.

 

Com o transporte público gratuito, temos uma política pública efetiva que pode reduzir as emissões de CO2 das cidades, melhorar a mobilidade, aumentar o número de pessoas no transporte coletivo, reduzir desigualdades, diminuir o uso de carros, aumentar a arrecadação de tributos, atrair mais empresas para a cidade e aumentar a empregabilidade. Fora todos os outros resultados ainda não medidos – e constante no relato dos gestores que implementam a política. Uma política que foi e continua sendo taxada como cara, mas que na prática custa em média R$ 0,12 centavos por habitante do orçamento anual dos municípios. O elitismo egoísta que ordena nossa sociedade não pode ver um direito social concretizado que já clama pela suposta crise orçamentária. Afinal, por que se importar com a tarifa zero e seus fundamentais impactos para o presente e o futuro, se podemos nos entregar à fervura climática e o aumento das desigualdades que vivenciamos? 

 

Giancarlo Gama com Andréia Myllena e Karoline Belo – Coletive Cidades 

Assine nossa Newsletter

Nós Não Enviamos Spam!

    Parcerias

    aceleração

    You don't have permission to register