Fervura no Clima e uma ilustração de turbina eólica.

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Fervura no Clima e uma ilustração de usina termelétrica sendo desativada.

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O calor, secura, enchentes, incêndios e riscos estão aí para todos, mas aumentam em número e grau de acordo com a pobreza

“Meu irmão, quando chega aquele busão com aquele motor quente no meio daquela gente toda espremida no ponto da estrada de Itapecerica fica um calor insuportável. Meu Deus.” Falava com os olhos arregalados e da maneira perspicaz de sempre o meu amigo Mauro Quintanilha, músico, paisagista e presidente-fundador do Parque Sitiê no Vidigal, Rio de Janeiro, sobre sua jornada para o trabalho todos os dias durante recente passagem profissional por São Paulo. “Muitas vezes pessoas de idade passam mal,” completou. Essa realidade descrita por Mauro constitui o que chamamos de desigualdade climática, onde pessoas mais pobres vivem e circulam em áreas mais expostas a riscos climáticos como o calor e secura extremos e enchentes, que têm cada vez mais impactos em sua saúde.

Em visita a São Paulo, vivi nesta semana uma secura de 12% de umidade no ar muito similar aos 10% no deserto do Saara logo após ter experienciado há alguns dias uma variação térmica de 26 graus celsius (6C para 32C) na mesma semana. Nesta segunda, após ter ido malhar no bairro da Lapa numa dessas academias franquias que têm sedes por todo o Brasil, o curto caminho de 15 minutos me fez depauperar muito mais do que todo o tempo de malhação. Pensei comigo mesmo, “tem algo de errado hoje”, e tinha mesmo, estava vivendo um clima de deserto numa área urbana com baixíssima umidade e temperatura acima dos 30C. Claro que nos Jardins ou em Higienópolis esse efeito é sentido mas com menos impacto pela arborização, ar-condicionado e umidificadores.

Caminhava um pouco tonto de volta para o apartamento em que minha família fica em São Paulo neste antigo bairro industrial e comercial que começa a se tornar habitacional pensando nas palavras de outro amigo, meu editor e prêmio Jabuti de Ciências, Matthew Shirts. Matheus, nome conquistado por sua brasilidade e por viver mais tempo no Brasil do que sou vivo,  falava para mim em visita ao Rio “Poxa, essa arborização, calçadas largas e praças aqui da Zona Sul é o que a gente deveria ter em todas as cidades do Brasil. Eu quero Zona Sul e Ipanema para todos.” É isso que falta na Lapa e em tantos lugares de São Paulo e do próprio Rio para não falar todo Brasil. A arborização urbana garante sombra, o que diminui entre 5-10C a temperatura da área em questão, também contém umidade em situações de secura extrema como São Paulo e sua Lapa; e espaços públicos associados a gabaritos que proibem prédios exageradamente altos diminuem a concentração de calor das  massas  dominantes de concreto e asfalto que funcionam como as panelas geológicas como vemos em Bangú, para dar outro exemplo. 

No Rio, mesmo com o calor insuportável dos piores dias de verão, me salvo com uma ida rápida a praia do Arpoador, a duas quadras de onde moro e trabalho, seguida de um banho  gelado em casa e dois ventiladores apontados para mim, o que faz possível sobreviver funcionalmente as altas temperaturas e conseguir produzir durante o dia. O mesmo não acontece em Guaratiba, Bangú ou Irajá, pois enquanto estou me adaptando aos 35-40C em dias que cada vez mais se repetem, em Guaratiba a população tem que lidar com uma sensação térmica de 62,5C, em Bangu acima dos 50C e por volta dos mesmos 50C em Irajá. 

Guaratiba e Bangu sofrem ainda mais por combinar questões meteorológicas e geológicas às sociais. A primeira devido ao fato de que a Zona Oeste do Rio recebe predominantemente ventos quentes do Norte e por estar próximo à baía de Sepetiba, cenário perfeito para muito calor com umidade que é o mais perigoso para vida humana (com os chamados bulbos úmidos). Já Bangu é cercada por grandes maciços de pedra, o que forma a citada panela geológica. Em comum com Irajá há o fato de que os indicadores de pobreza e má urbanização são maiores comparados a muitas áreas da cidade o que acentua os extremos climáticos. Outras áreas na Zona Oeste, como Campo Grande e Zona Norte, como o Meier e dentro de comunidades como o Complexo do Alemão e Penha, logicamente sofrem muito mais que a Zona Sul.

A Crise Climática é isso, muito calor ou pouco calor com muita água ou pouca água. Os bulbos úmidos, formados por  muito calor com umidade, são os mais perigosos em termos de letalidade, mas todas as combinações são também muito perigosas. Nossa evolução na faixa de temperatura e umidade dos cachinhos dourados fica cada vez mais no passado e é urgente agirmos para não deixar acontecer uma eugenia climática não só entre os países mas dentro de nossas cidades. Esse fenômeno não ocorre só aqui. Em recente publicação do San Francisco Chronicle, jornal da “capital tecnologia e riqueza na Califórnia”, foi apresentada pesquisa que demonstra uma variância de temperatura nas estações do sistema de trens BART Network de 25 graus celsius, 42C na estação de Daly City para 17C estação de Walnut Creek. Ganha um doce quem adivinhar qual área é rica e qual é pobre. Em NYC, pesquisa publicada semana passada pelo The New York Times mostrou situação similar em que as 400 estações mais quentes da cidade tinham muito maior densidade de uso, urbanização pior e ficavam em áreas mais pobres e com mais pessoas de cor, enquanto as mais refrescadas ficavam em áreas mais afluentes. 

Como apontado pelo cientista de dados Jonathan Gilmour, pesquisador da H.T. Chan School of Public Health de Harvard, esses cenários constituem uma crise de equidade de saúde e justiça climática. Ao mesmo tempo, várias pesquisas indicam com correlações estatisticamente significantes que ações violentas tendem a aumentar quando a temperatura sobe e/ou o acesso a água se torna mais escasso (National Bureau of Economic Research, 2021), o que torna a apontada crise de saúde e justiça ambiental um degrau para crises cada vez maiores  de segurança pública. 

O meteorologista Jeff Masters em recente publicação na plataforma de comunicação climática da Yale University reforça em artigo da semana passada que teremos que encarar no mínimo mais 50 e provavelmente 100 anos de fervura global com eventos extremos cada vez mais intensos e sucessivos. De acordo com toda evidência científica que temos, é preciso e urgente realizar a transição energética simultaneamente à criação de resiliência em nossas cidades e infraestruturas por meio da estratégia do Urbanismo Climático. O Banco Mundial (2024) já aponta que é 7 vezes mais caro não agir do que realizar a inevitável grande transformação urbana e infraestrutural. A escolha é simples, ou realizamos o feito histórico mais decisivo para a existência da humanidade ou teremos um desmoronamento massivo das nossas sociedades e economias desembocando numa eugenia climática global entre os países e áreas das nossas cidades. 

Não existe bala de prata, para construir um futuro viável precisamos de uma grande transformação climática urbana composta de várias soluções que funcionem de maneira integrada para resistir e superar a grande tribulação da crise climática que criamos para nós mesmos. Nessa visão, precisamos substituir aquelas jamantas de combustão suja do carbono que fervem por nossas cidades Mauro e quem mais estiver em qualquer ponto por ônibus elétricos que não emitem gases de efeito estufa, esquentam muito menos, tem ar condicionado e nem fazem barulho. Está aí um retrato concreto de uma das coisas pelas quais precisamos lutar pelo nosso bem-estar nas cidades e planeta, o tão falado local e global. Vamos com tudo, só lembre de beber água.     

Pedro Henrique de Christo (urbanista climático, notório saber, fundador do estúdio interdisciplinar +D de Arquitetura & Urbanismo, criador do primeiro Modelo 4D de simulação de cenários climáticos urbanos, professor visitante de desenho urbano no URBAM-Eafit Medellín, presidente do NAVE – Novo Acordo Verde, Dir. do Parque Sitiê e Mestre em Políticas Públicas – MPP’11 em Harvard);

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