Fervura no Clima e uma ilustração de turbina eólica.

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Fervura no Clima e uma ilustração de usina termelétrica sendo desativada.

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EUA, política do clima e a China

Em uma reviravolta política inesperada, o Presidente Joe Biden avança no senado com o projeto climático de economia de baixo carbono

Picasso dizia que para se “fazer a inovação é preciso conhecer a tradição.” É exatamente isso que o presidente americano Joe Biden está fazendo para aprovar o Inflation Reduction Act (Ato de Redução da Inflação), que tem empacotado dentro do mesmo o que foi mantido da proposta original do Climate Bill  (Proposta Legislativa do Clima) no valor de USD 369 bi, ou seja, R$ 1.950 tri. Uma vez aprovado, esse será o maior plano nacional de Ação Climática realizado na história e marcará uma mudança no espírito do tempo, do modelo de desenvolvimento mundial e da relação da sociedade civil global com a questão climática. 

Tem sido, e sempre serão, decisivos os esforços de ativistas e cientistas, mas sem a apropriada ação política as transformações, ainda mais geracionais como essa, não são materializados em políticas públicas. Afinal, como foi que os democratas conseguiram mudar o jogo dessa negociação, por que esse plano é tão transformador e como isso tem o poder de inaugurar uma nova era de Ação Climática pelo mundo?

Em linha com o Acordo de Paris, o presidente Joe Biden se comprometeu a que os EUA cortem suas emissões entre 50-52% comparado aos níveis de 2005 até o final dessa década. Para tal, um acordo histórico teria de ser alcançado no congresso e após 2 anos travando as negociações sobre a Climate Bill, há alguns dias o senador do estado de West Virginia, Joe Manchin, tomou o púlpito do senado junto a seu colega e líder da maioria democrata, Chuck Schumer, para anunciar que o partido do presidente havia chegado a um acordo. Uma grande notícia não só para os EUA como para o mundo. Com as eleições de “midterm” (meio de mandato do presidente) se aproximando em novembro e com o risco de os democratas perderem a maioria na câmara ou no senado, a janela para passar uma legislação transformadora como essa vai se fechando cada vez mais. A hora tinha que ser essa.

Numa negociação que lembrou a que o presidente Lincoln fez para conseguir a maioria na votação pelo fim da escravidão nos EUA no século XIX, foi executado um cálculo estratégico e pragmático. Enquanto Lincoln garantiu vantagens econômicas e leis de transição do status quo mais vantajosas para os deputados e senadores que estavam em cima do muro para que votasssem pelo fim da escravidão, Biden garantiu a Manchin e ao conglomerado local que representa o direito de prospectar mais gás-natural e outros combustíveis fósseis. 

Essas concessões foram focadas no estado de Manchin, a West Virginia (Virgínia Ocidental), no Golfo do México e no Alaska. Foi turbinada, ainda, a alocação de recursos para trabalhadores do setor de carvão na West Virginia assim como foi criado um fundo de amparo aos profissionais dessa indústria que foram acometidos ao longo do tempo pela doença do “Pulmão Preto”. Resumidamente, foi garantida a reeleição de Manchin por pelo menos mais dois mandatos e aumentada a sua projeção de lucros no curto e médio prazo. Sua família é uma das donas da cadeia de produção de energia fóssil do estado. O tão criticado Biden deu aula, conseguiu realizar a partir de um perda pontual um ganho sistêmico, mostrando habilidade política.  

Mesmo não alcançando o compromisso assumido por Biden de 50% de redução, essa proposta é decisiva porque coloca os EUA no caminho de uma redução de emissões de 40% abaixo dos níveis de 2005 até 2030. É uma mudança de patamar na questão ambiental que começa a nos aproximar da difícil mas extremamente necessária meta de manter o aumento da temperatura global a 1,5 C em média. Segundo Jesse Jenkins, um engenheiro de sistemas de energia da universidade de Princeton e um dos responsáveis pela modelagem que embasou a proposta democrata: Essa proposta legislativa faz em torno de ⅔ do trabalho que precisamos fazer para atingir nossas metas climáticas, o que para uma única peça de legislação é uma coisa muito grande.” 

O “Ato de redução de inflação de 2022” inclui aproximadamente USD 485 bi em investimentos e redução de impostos, a maioria dirigida a programas climáticos e de energia, juntamente a menores quantias para saúde pública como o subsídio para redução do preço de certas drogas. Todos esses investimentos e despesas são então compensados por cerca de USD 790 bi de aumentos de impostos e medidas de austeridade fiscal, de acordo com o Committee for a Responsible Budget, um grupo não-partidário. 

Economistas e especialistas em políticas públicas afirmam que sim, o ato pode ajudar a reduzir a inflação, ao controlar o aquecimento da economia com suas medidas de austeridade assim como por meio da transição energética para renováveis que não são tão vulneráveis às oscilações e atual alta do mercado internacional de petróleo e energia fóssil devido a guerra da Ucrânia, as decorrentes sanções na Rússia e o estado de manipulação de preço pelos países da OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). 

É verdade que a legislação proposta requer que sejam realizados leilões para concessões de combustíveis fósseis se o Departamento de Interior planejar aprovar projetos de energia solar ou eólica em terra federal. Entretanto o impacto dessas medidas tem tudo para ser pequeno. De acordo com analistas da organização Energy Innovation para cada tonelada de emissões criada pelas provisões de concessão pelo menos 24 toneladas de emissões serão evitadas por outras provisões, um excelente negócio climático. Caracterizada por sua abordagem sistêmica a proposta inclui centenas de bilhões de dólares em crédito, bolsas, procurações de concessões federais, créditos tributários para P&D (Pesquisa e Desenvolvimento), desenvolvimento e produção de energia limpa, transporte e outros setores como o agronegócio. 

Um dos principais focos da proposta é a transição energética. Do capital total estão alocados cerca de USD 30 bi em créditos tributários para construção de projetos de energia solar, eólica e de outras fontes. Há também USD 60 bi em incentivos para produção doméstica, desde baterias para painéis solares até bombas de aquecimento elétricas (um ar condicionado sustentável). Há ainda USD 27 bi previstos para P&D de energias limpas assim com USD 2 bi para pesquisas específicas em laboratórios dos EUA. Outros setores também receberão importantes aportes, como a agricultura com USD 20 bi, e atividades de conservação com USD 5 bi, somando assim o maior investimento da história do país pela Ação Climática . 

Uma área em especial está ganhando muita atenção, a de EVs (electric vehicles), ou seja, veículos elétricos. Quem desejar comprar um EV receberá um crédito de USD 7.500 na compra de um carro novo e de USD 4,000 na compra de um semi-novo. Junto a essa concessão de crédito, que varia de acordo com o tipo de modelo de EV (popular até luxo), será desenvolvido um programa de transição para fortalecimento da produção nacional. Esse “protecionismo americano” designa que pelo menos metade das baterias dos EVs terão de ser produzidas nos EUA até 2024 e 100% destas até o final de 2028. 

O que a proposta perdeu em sua negociação foram créditos tributários para linhas de transmissão, um claro obstáculo colocado pela indústria fóssil para tentar retardar sua própria obsolescência. Nesse espírito, o gabinete de Manchin propôs algumas provisões para facilitar a aprovação de grandes projetos de energia que podem incluir linhas de transmissão elétrica como também de gás natural, de captura de carbono (tecnologia sem viabilidade alguma até o momento), e termelétricas. 

Apesar dessas dificuldades, a estratégia de criar isenções fiscais e taxas de metano (royalty fees) em terras federais foi feita em complementaridade a novas leis ambientais mais estritas por parte da EPA – Agência de Proteção Ambiental americana. E como observado, a proposta inclui medidas para áreas geradoras de emissões que estão fora do escopo da EPA, tais como prospecção marítima e terminais de importação e exportação de gás natural.

É verdade que a proposta é toda sobre incentivos e nada sobre penalidades. A mesma não inclui muitas novas regras e restrições para o setor industrial. Não há imposto de carbono, medida que a maioria dos economistas consideram há muito tempo como das mais efetivas para se cortar emissões. Não existe padronização do portfólio de energias renováveis como os que ajudaram a gerar crescimento de infraestrutura para as redes de energia solar e eólica nos estados da Califórnia e New York. E, finalmente, não há mandatos de redução de emissões que  obriguem fábricas e outros negócios a cortarem a poluição de carbono como foi feito, e de forma extremamente bem-sucedida, com a questão do Ozônio na atmosfera. 

Como todos os senadores republicanos (de direita) se opõem à Proposta do Clima, há também a necessidade de se convencer de uma vez por todas a última membro democrata do senado a ainda não declarar apoio a proposta, a senadora Kyrsten Sinema do Arizona, já que os democratas precisam dos 50 votos que têm para enviar a proposta para câmara. Sinema faz lobby por uma brecha que permita que entidades do setor financeiro e seus profissionais não paguem os impostos que os demais trabalhadores e organizações da economia americana terão de pagar. Apesar do caráter controverso de se fazer um meio termo ao que ela defende, isso é certamente algo capaz de ser contornado, uma vez que se fez acordo bem mais difícil com o Senador Joe Manchin.

De toda forma, há sim grandes motivos para que possamos ficar esperançosos com um futuro viável para a humanidade e o planeta. Inaugurando uma nova era de Ação Climática, o Ato de Redução de Inflação de 2022, AKA (apelidada) de Proposta do Clima (Climate Bill) mantém na luta por um futuro climático viável o maior emissor global historico, que também é o país mais rico e poderoso do mundo, tornando possível que ação executiva nos estados e governos locais e no setor privado “possam nos levar até a linha de chegada”, como afirma Jenkins. Para se ter uma ideia, dentro dessa nova dinâmica poderá ser instalada o dobro de capacidade de produção solar e eólica até 2030 do que se a proposta não fosse adiante.  

Já no âmbito internacional, é lançado um desafio a alguns países na corrida pela supremacia das tecnologias verdes, como o caso da China, e um incentivo a outros, os que são parceiros geopolíticos dos EUA. Parece que na luta climática um grande avanço sempre vem associado a um grande novo desafio. Hoje não foi diferente, com a preocupante notícia de que as cooperações de caráter militar e climática entre os EUA e a China estão suspensas devido a irresponsável visita da presidente da câmara de deputados americana, a democrata Nancy Pelosi, a Taiwan mesmo contra pedidos da administração Biden e no mesmo dia do aniversário de 95 anos do Partido Comunista Chinês. 

Apesar dos imensos desafios, vivemos uma verdadeira mudança do espírito do tempo em relação à questão climática. Se antes o drama era para saber quem seria o primeiro-movedor, agora, depois desta proposta que está prestes a se concretizar nos EUA a corrida, principalmente entre os americanos e os chineses, as duas grandes potências globais que escalam sua rivalidade, se encaminha cada vez mais para ver quem será o líder da transição climática. Seja na geopolítica mundial, ainda liderada pelos EUA, ou na transformação das cadeias produtivas da inevitável economia verde e suas tecnologias, hoje lideradas pela China. Entretanto, alguma modalidade de cooperação entre os EUA e a China é essencial para a superação da Crise Climática, pois são os dois principais emissores. Para que isso aconteça a demanda pelo Brasil como líder climático e potência socioambiental capaz de intermediar essa relação junto a outros atores de peso, como a União Européia, Índia e África do Sul se torna ainda mais urgente.

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