ilustração de Catharina Suleiman
Por Giovanna Suleiman
“Sempre haverá guerra. Mas para voltar para casa, Furiosa lutou contra o mundo.”
Quando penso no feminino inicio essa trajetória pensando na minha mãe, nas mulheres que me rodearam e me criaram. Minhas professoras, minhas amigas, minha orientadora. Daí penso nas mulheres que nos criaram como um todo. Simone de Beauvoir, Chimamanda Ngozi Adichie, Ana Cristina César, Clarice Lispector, as Sufragistas, Mary Wollstonecraft, Sylvia Plath, Virginia Woolf, Billie Holliday, Rita Lee. São muitas. Inúmeras. Cada uma, à sua maneira, travou uma batalha. Todas guerreiras em seu tempo, enfrentando o mundo com palavras, ideias, arte ou resistência. As suas lutas mudam de rosto, mas não de essência.
Hoje, diante da crise ecológica global e do colapso ambiental que atravessa nossa realidade, percebe-se que o feminino está novamente convocado a resistir. Assim como Furiosa, personagem do filme Mad Max: Estrada da Fúria (2015), buscamos voltar para “casa”. Buscamos um refúgio que ainda não existe, mas que precisa ser inventado ou reimaginado. O nosso futuro possível.
No longa, o mundo de Furiosa se encontra em ruínas, um deserto onde o sopro da natureza secou e a humanidade luta pela sobrevivência em meio às cinzas que ela mesma criou. A Citadela, uma fortaleza de pedra que se ergue contra o céu, agarra as últimas gotas de água como o tesouro, enquanto sombras distantes de Gas Town e Bullet Farm tossem fumaça no ar envenenado. Onde o “Lugar Verde” antes prosperava, agora só existe podridão, um lamaceiro de esperança perdida. Nesta terra abandonada, monstruosas plataformas de guerra trovejam, sufocando o horizonte com o rugido do desespero, seus motores alimentados pela violência e pelos ossos de uma civilização despedaçada.
Furiosa e o lugar verde
É neste cenário devastado que emerge Furiosa, uma figura interessante e provocadora para uma leitura ecocrítica. Sua luta não é apenas por liberdade, mas por uma possibilidade de futuro. Ela é uma personagem que permeia problemáticas importantes para o debate ecocrítico, como sua busca pela liberdade. Sua motivação é escapar do controle tirânico de Immortan Joe, que explora mulheres e recursos naturais e, junto com as Esposas (um grupo de mulheres exploradas por Joe), ela quer encontrar o lendário “Lugar Verde”, um paraíso que ela lembra de sua infância. Ela carrega em si a memória de um mundo possível com o “Lugar Verde” e é essa lembrança que a move. No cerne de sua motivação está a esperança de renovação, tanto para ela quanto para o mundo ao seu redor. Ela prevê um futuro livre de um sistema patriarcal tóxico que envenenou a terra e seu povo, esperando que o “Lugar Verde” ofereça refúgio e um novo começo.
Em sua obra Ecocritical Explorations in Literary and Cultural Studies: Fences, Boundaries, and Fields o professor e autor Patrick D. Murphy propõe: “Nas histórias pós-apocalípticas, a reconstrução do mundo reflete os desafios não apenas da sobrevivência, mas também as considerações éticas de como construir sociedades que evitem os erros da destruição ambiental” (Murphy, 2009, p. 46, tradução nossa). Para além apenas das temáticas que abrangem a sociedade como um todo, gostaria de pontuar a luta de Furiosa como mulher. Em sua obra Feminism and the Mastery of Nature a filósofa Val Plumwood propõe: “O ecofeminismo critica as estruturas patriarcais que exploram tanto as mulheres quanto a natureza, demonstrando como os sistemas de dominação sobre o meio ambiente estão ligados à opressão de grupos marginalizados, particularmente as mulheres” (Plumwood, 1993, p. 41, tradução nossa).
O ecofeminismo
O ecofeminismo, ao entrelaçar a crítica à dominação da natureza e à opressão das mulheres, evidencia que não se trata de lutas isoladas, mas de sistemas de exploração que se reforçam mutuamente. Assim como Furiosa se vê compelida a lutar não apenas por um ideal, mas por sua própria sobrevivência e pela daqueles que protege, a mulher contemporânea que se coloca em defesa do meio ambiente também responde a uma urgência vital. Essa relação ilustra como o ecofeminismo articula um pensamento que transcende a associação apenas entre mulher e natureza, propondo uma ética relacional que reconhece a interdependência intrínseca entre todos os seres e ecossistemas.
Françoise d’Eaubonne (1974, p. 72, tradução nossa), ao cunhar o termo “ecofeminismo” em sua obra Le féminisme ou la mort, propõe: “O ecofeminismo surge da constatação de que a mesma lógica que oprime as mulheres oprime também a natureza”. Assim, o ecofeminismo não trata de separações entre gêneros, mas de tentar embarcar um equilíbrio social e ambiental que defende tanto a natureza quanto as minorias que foram oprimidos, lado a lado: “Tanto a natureza quanto as mulheres foram reduzidas a meros recursos para exploração na sociedade patriarcal, mas elas também são a fonte de vida, regeneração e criatividade. A luta ecofeminista é sobre reivindicar esse poder nutritivo para um mundo em equilíbrio” (Shiva, 1989, p. 38, tradução nossa).
Donna Haraway, por sua vez, amplia essa perspectiva ao sugerir a necessidade de “fazer parentes” (“making kin”) para além da espécie humana, ressaltando que a luta ecofeminista não se restringe aos termos mulher-natureza, mas envolve uma política mais ampla de alianças multiespécies em tempos de crise ecológica. Em sua obra Staying with the Trouble (2016, p. 4, tradução nossa) a autora propõe: “Precisamos aprender a viver e morrer bem uns com os outros em um planeta danificado”
Portanto, o ecofeminismo não se limita a denunciar os mecanismos de dominação; ele propõe uma reimaginação do futuro, no qual a defesa da natureza está intrinsecamente ligada à defesa das minorias e dos grupos historicamente marginalizados. A jornada da Furiosa, nesse contexto, pode ser lida como um símbolo de resistência que coloca em debate tanto a sobrevivência individual quanto a possibilidade de um futuro possível, assim como apresenta e representa o poder e potencial de um luta feminina e as intermináveis listas das mulheres que lutaram e lutam por tais futuros possíveis longe da exploração e marginalização para todas as imensas e diversas minorias.
Finalizo com uma frase de Vandana Shiva que resume uma das principais lutas ecofeministas encontrada em sua obra Staying Alive: Women, Ecology and Development: “A diversidade é a base da vida. A uniformidade e a monocultura são as bases da morte.” (Shiva, 1989, p. 45, tradução nossa).









