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“São as mídias sociais, estúpido”

Algoritmos desintegram a democracia enquanto as esquerdas se elitizam
Cachorro escuta a "Voz do seu mestre" no clássico poster do Gramophone

Pedro Henrique de Cristo

Enquanto analistas patinam para explicar a vitória de Donald Trump querendo fazer referência a economia e inflação, que na verdade estão bem com Joe Biden, crescendo na casa de 2,8% neste ano após crescimento médio de 3,37% no pós pandemia e com preços controlados em 2.4%, ou fazendo referência a uma nostalgia pré-pandemia como o conselho editorial do New York Times, a verdade nua e crua é que o fator mais importante para vitória de figura tão torpe e resultados fracos foram as mídias sociais. Inicialmente, mídias estas que foram bem utilizadas por Barack Obama em 2008 para crescer seu movimento e ganhar as eleições mas que se tornaram uma máquina de mentiras e moldagem de percepções ao longo do tempo devido ao seu modelo de negócios movido por algoritmos que condicionam as pessoas para ter sempre maior engajamento e tempo de uso a qualquer custo.

De peça pregada para comparar garotas por aluno impopular em Harvard, para o Facebook, Instagram, Whatsapp, Twitter (agora X), Tiktok e lógica similar aplicada no Youtube e nos SOE – Search Operation Engines, mecanismos de busca, as mídias sociais e seus desdobramentos se tornaram um verdadeiro sistema Pavlov de alta tecnologia (método de condicionamento comportamental de comando e controle desenvolvido pelo neurocientista soviético Ivan Pavlov em cachorros e aplicado nos usuários de redes sociais/virtuais). 

Com a aplicação de tecnologias de ponta desenhadas a partir de neurociência de alta sofisticação as Big Techs desse segmento avançaram gradualmente na sua versão de Pavlov juntando-a intrinsecamente a dois elementos principais: (1) a aplicação total do surveillance capitalism (capitalismo de monitoramento/supervisão), termo criado pela psicóloga Shoshana Zuboff da universidade de Harvard que remete ao monitoramento ilegal de usuários por meio de câmeras e microfones de celulares e computadores para acúmulo de dados com foco em aumento de engajamento, tempo de uso e customização de ofertas de consumo e manipulação de percepção. O clássico, se algo é de graça na internet, a mercadoria é você, e; (2) a integração do condicionamento de comando e controle Pavlov moderno e o orwelliano capitalismo de monitoramento a la 1984 com a aplicação do SOMA, a manipulação por dopamina mencionada por Aldous Huxley em seu livro seminal Brave New World 9Admirável Novo Mundo). 

Cada trin trin de uma nova mensagem no Whatsapp muito similar aos sinos usados nos cachorros por Pavlov, cada numerozinho de notificação ou “coraçãozinho” vermelho, não por acaso, no ícone do mesmo app de mensagens, Instagram, Facebook, Tiktok e X, e likes condicionados ou apresentaçoes de links involuntários nestas mídias sociais e no Youtube pelo comando dos algoritmos que direcionam maior quantidade de visualizações, aprovação e popularidade artificiais para exibição corporal, exibicionismo, comportamentos histriônicos, violência, mentiras e sexo em nossas fotos e posts,  junto ‘à promoção paga do que quer que seja pelos anunciantes,, fazem com que nossa atenção e comportamentos sejam moldados cada vez mais ao bel prazer dos monarcas digitais donos dessas mídias sociais e seus fantoches políticos. 

O resultado, como aponta o psicólogo Jonathan Haidt, professor da NYU – New York University, é que ao usar essas mídias a saúde mental das pessoas e principalmente dos jovens, crianças, especialmente, meninas adolescentes, e vulneráveis está sendo destruída. Como Haidt fala, as mídias sociais são máquinas de controle de fazer pessoas loucas. Junte-se a isso a manipulação de verdades objetivas por uma máquina de mentiras, chamadas erroneamente pelo eufemismo fake news, onde mentiras que geram maior engajamento e geram realidades perigosas são promovidas pelos algoritmos em detrimento da verdade. 

As BigTechs deste segmento se defendem dizendo que elas são uma ágora pública e não podem regular o que é dito, mentira outra vez. Pois elas não são uma ágora pública mas sim uma câmara privada onde o que é visto e promovido é decidido por elas em escala massiva com seus algoritmos e pelo montante pago por seus anunciantes. O que isso significa? Que assim como jornais elas têm que ser responsabilizadas pelos conteúdos que permitem ser apresentados e que as mesmas promovem, algo que não foi feito até hoje pelas lideranças públicas por um desconhecimento brutal sobre novas tecnologias, interesses privados e/ou uma imensa falta de coragem. 

O chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbles falava que uma mentira repetida mil vezes vira verdade. A máquina de desinformação global da qual Trump é um dos seus maiores expoentes, adaptada inicialmente nos EUA por Steve Bannon, não só compartilha valores com a escória da humanidade no século XX como também adotou essa estratégia de maneira exponencial pois as mídias sociais não repetem mentiras apenas mil vezes mas sim milhões e bilhões de vezes. O fazem até cidadãos acreditarem que uma economia e inflação que estão indo bem estejam, na sua percepção controlada por outros, mal. Ou como explicar em grande medida que os votos pró-Trump aumentaram praticamente em todas as demografias nos EUA, desde os negros aos latinos e mulheres, grupos execreados publicamente por ele em várias ocasiões.

Essa máquina de comando e controle de percepção foi estruturada e desenvolvida em larga escala e sofisticação pela contra-inteligência russa. No final da primeira década deste século, ao perceber que não haveria como competir com os EUA e China por meio do militarismo tradicional, o Kremlin decidiu que precisava travar uma guerra na dimensão da percepção e que sua grande oportunidade era a esfera digital e suas mídias sociais. Assim nasceu o que ficou conhecido no ocidente como doutrina Gerasimov, em alusão ao general Valery Gerasimov supostamente responsável por sua criação. Além de na própria Rússia essa doutrina foi desenvolvida gradualmente primeiro na Hungria apoiando a ascensão do extremista de direita Viktor Órban, na sequência em tentativa frustrada mas que registrou fortalecimento de Le Pen na França e em seguida de maneira bem-sucedida com o Brexit no Reino Unido, onde contra todos os interesses enconômicos dos britânicos a máquina de moldagem de percepção fez com a que a população votasse pela saída da União Européia, decisão que se provou péssima com o passar dos anos e foi retroagida em grande medida. 

A grande chance dos autoritários

Então em 2016 veio a grande chance da Rússia, Trump, que havia sido salvo da falência completa por magnatas russos e originários de ex-repúblicas soviéticas como o Cazaquistão no começo dos anos 2000 (Hirsch, M; Foreign Policy), surgiu como uma possibilidade real nas primárias republicanas e então virou candidato. A máquina russa de manipulação da opinião pública azeitada com as experiências prévias, pluggada nos EUA por Steve Bannon e facilitada pelas mídias sociais e celulares “smartphones” entrou então com tudo e foi um fator decisivo para eleição do empresário incompetente que fez imagem de bem-sucedido. 

Em seu início, o governo Trump vinha se beneficiando das políticas públicas desenvolvidas por Barack Obama como a que ele mais criticava, o Obama Care, e medidas econômicas de resultado de curto prazo que cobrariam seu preço depois mas a pandemia chegou e demonstrou a verdade sobre sua inaptidão e caráter abrindo caminho para que um revigorado Joe Biden lhe derrotasse em 2020. Infelizmente, a idade de Biden prejudicou sua capacidade de competir neste ano e então ele foi substituído por sua vice, a boa mas de certa forma inexperiente e carente de uma agenda própria clara, Kamala Harris que acabou não sendo páreo para a máquina de manipulação das mídias sociais, o capital de bilionários de ultra-direita como Elon Musk e o machismo gritante nos EUA. 

A mentira de que a economia ia mal virou verdade, a condenação criminal de Trump foi abafada, e outras mentiras surreais como a que imigrantes haitianos estavam comendo os animais de estimação dos moradores da cidade de Springfield em Ohio foram publicizadas por Trump e J.D. Vance, seu vice e ex-advogado da elite do Vale do Silício, notoriamente de Peter Thiel, um dos maiores financiadores de Trump que é contraditoriamente ao mesmo tempo gay e conservador supremacista branco, eugenista e monarquista com fixação nos vilões de Senhor dos Anéis. É isso mesmo que você leu. 

Entretanto, o mais notório foi a culminação da estratégia do afrikaner, denominação a população branca da áfrica do sul, criado no apartheid sulafricano e naturalizado americano Elon Musk que comprou o Twitter o transformando em X onde mesmo incorrendo perdas superiores a USD 30 bi alcançou seu objetivo de agressivamente moldar parte importante da percepção americana juntamente com a absurda doação de USD 1 mi a vários eleitores que se filiassem para votar em estados pêndulo num claro processo de influência na votação por troca por dinheiro. Desde que comprou o X ele perdeu mais USD 30 bi em desvalorização de mercado mas já ganhou no dia pós pleito quase tudo isso com a eleição de Trump e a valorização da Tesla em 14% para não falar de suas outras empresas como a SpaceX. É esse o jogo. 

Claro que os excessos da pauta identitária, uma agenda burguesa-liberal que divide os progressistas e facilita sua conquista pelos adversários da direita servindo a normalização da extrema-direita, teve o seu papel como alertou Barack Obama depois da primeira eleição de Trump em 2016. Como aponta o intelectual Muniz Sodré, só existe uma raça, a humana, e por mais que exista uma objetividade pragmática em dividir a população por cor, “raças”, para reparação de injustiças históricas acaba-se por criar uma meta esfera de existência onde o racismo, a distinção entre a raças ao invés do seu fim com justiça social para todos, se torna a realidade de existência concedendo-se assim vitória inegável por mais que imperceptível ao racismo. 

Em outras esferas, passou-se a discutir mais questões comportamentais bem classificadas como transgressão performática por acadêmicas originais de esquerda como Catherine Liu do que o que mais importa: a melhoria da vida das pessoas, ou seja, a sua segurança, saúde, educação, ação climática, renda, riqueza e direitos humanos universais. É muito mais fácil para as elites limousine-liberal, termo cunhado para os democratas mais elitistas nos EUA mas que serve muito ao Brasil também, defenderem exacerbadamente apoio a transgressões comportamentais, que devem ter seus direitos respeitados e mantidas na esfera privada dos indivíduos, do que realmente dividir o bolo, poder e lutar por mudanças realmente estruturais como política macroeconômica, educação e saúde pública, segurança para todos, transformação urbana e no caso climático, cuidar das pessoas, especialmente na resiliência urbana, e fazer a urgente transição energética ao invés de só se falar de conservação ambiental como é o praxe no meio deixando sempre as pessoas para depois.

É verdade que a esquerda, especialmente nos EUA e Brasil, se afastou da realidade da população trabalhadora e de temas inclusivistas para ficar atuando de maneira fatiada no por vezes excessivo identitarismo que nos divide e facilita o trabalho da direita. Após o fracasso retumbante da esquerda nas últimas eleições municipais, aqui a completa falta de noção de realidade de lideranças com experiência acadêmica e de movimentos sociais de nicho mas não verdadeiramente trabalhista foi notória. O candidato derrotado em São Paulo para prefeito, depois de campanha perdida onde buscou ir de maneira artificial para o centro e se aproximar do extremista de direita Pablo Marçal que o havia ofendido gravemente, rearfimou após as eleições que a esquerda tem que ir mais para esquerda, na sua semântica mais identitarismo, divisão e impraticalidades. 

Apesar de eu ser completamente a favor da universidade pública, é preciso apontar também que um conhecido acadêmico inclusive com algumas pontuações importantes, Vladimir Safatle, falou o mesmo e mais: que reconhecer a importância do empreendedorismo era um absurdo e assumir a derrota total para o neoliberalismo. Pelo amor de Deus, o mundo onde a maioria dos empregados trabalhavam em fábricas não existe mais. Hoje no Brasil e no mundo, inclusive nos estados de bem-estar social escandinavos que são o modelo democrático mais bem sucedido, a maioria dos empregos, em torno de 60%, está no setor de serviços que é dominado por pequenas e médias empresas. E estas são fruto do empreendedorismo na maior parte das classes médias e mais pobres. 

Além do notório desconhecimento de causa, este professor com aparentemente nunca pegou um ônibus lotado ou um trem ou metrô na hora do rush na estação da Luz em São Paulo ou na Central do Brasil no Rio de Janeiro para entender que as pessoas querem uma vida melhor e que por opção e necessidade elas empreendem. Seja porque não querem gastar horas por dia no traslado entupido de gente entre casa e trabalho ou porque perderam o seu emprego e querem dar um jeito para sobreviver. Isso é potência, sobrevivência e inteligência e nós temos que apoiar essas pessoas, não querer ditar como devem ser suas vidas de forma elitista e, surpreendentemente, nada inteligente. 

Essa é a nossa situação atual, enquanto progressistas se desconectam mais e mais da população para viver a base de linhas gerais positivas, diminuir a desigualdade, mas vagas no como e com muita transgressão performática, a ultra-direita vai dominando tudo com a arma mais poderosa do nosso século, os instrumentos de manipulação em massa que são as redes sociais, youtube, SOEs e celulares. 

Mesmo que progressistas acertem as políticas públicas que precisam ser feitas e as causas que o povo quer dentro de um humanismo climático, que é o caminho para o nosso século, ainda teremos que superar e regular as mídias sociais, como fazemos com todos os demais meios de comunicação. O que move e decide o que é visualizado e aceito é o capital investido  e os comportamentos privilegiados pelos algoritmos, que são aqueles que favorecem as agendas de quem coloca o dinheiro nas plataformas em forma de anúncios e posts patrocinados. Como é a extrema direita que possui mais capital e dentre os abastados está disposta a entrar assertivamente na política é lógico que ela será beneficiada sempre. Expoentes tortos e descapacitados das mídias sociais como Pablo Marçal, Nikolas Ferreira, Bolsonaro e Trump não são gênios da comunicação, eles são frutos dessa lógica. 

Sem a devida regulação e responsabilização judicial os mentirosos continuarão sendo os verdadeiros, e os opressores os libertadores desse povo onde a cada dia os que gostariam de defendê-los os deixam de entender mais e são gradualmente desconectados deste de forma artificial pelas mídias sociais. Não há como os progressistas ganharem da direita hoje com mais do mesmo, é preciso uma contra-ofensiva digital de disputa e regulação decisiva junto a um realinhamento de propostas baseado na realidade com mobilização física e digital contemporânea, não num pseudo-entendimento e prioridades exclusivistas que a ultra-direita aproveita para repaginar suas mentiras. É preciso hackear corações.

Pedro Henrique de Christo (urbanista climático, notório saber, fundador do estúdio interdisciplinar +D de Arquitetura & Urbanismo, criador do primeiro Modelo 4D de simulação de cenários climáticos urbanos, professor visitante de desenho urbano no URBAM-Eafit Medellín, presidente do NAVE – Novo Acordo Verde, Dir. do Parque Sitiê e Mestre em Políticas Públicas – MPP’11 em Harvard);

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