Por Giovanna Suleiman
A floresta permanece imóvel, um mundo em silêncio. Árvores, esqueléticas e cinzas, esticam seus galhos retorcidos em direção ao céu pálido. Os riachos e rios que antes serpenteavam pela floresta agora são leitos secos de terra rachada, seus cursos gravados como cicatrizes pela terra. Nenhum pássaro canta nas copas das árvores, nenhum inseto zumbe no mato. A ausência de vida é profunda, até os pequenos espíritos que nela habitavam haviam sumido. O que antes era um local sagrado, agora era um local morto – até o momento em que Ashitaka e San devolvem a cabeça do Espírito da Floresta. Em instantes, das profundezas da terra, uma agitação. As árvores renascem, não por completo, mas florescem. O céu retoma sua coloração. O mato desperta do solo e recebe algumas flores e os insetos voltam a circular entre seus ramos. Aos poucos, as cores e os sons começam a voltar e um pequeno espírito da floresta relaxa em cima de uma pedra. Ao observar tudo isso, San fala para Ashitaka: “Mesmo que todas as árvores cresçam novamente, não será mais sua floresta. O Espírito da Floresta está morto” e Ashitaka responde: “Nunca. Ele é a própria vida. Ele não está morto, San. Ele está aqui conosco agora, nos dizendo que é hora de nós dois vivermos”.
A ecocrítica é uma concepção utópica (1). No sentido geral, ela não é uma solução, ela é uma ferramenta. Uma ferramenta significativa e importante para a compreensão do nosso mundo atual e concepção de um mundo onde a humanidade habita a Terra. Ashitaka (2), com seu objetivo de mediar o conflito e trazer paz entre os dois lados, é a representação da busca pelo equilíbrio entre a natureza e a humanidade, portanto, uma representação da ecocrítica. Assim, retomo as falas de Krenak em que pontua a importância de não apenas ouvir a voz silenciada da natureza, como também, as vozes silenciadas da própria humanidade. Particularmente, perante o assunto da ecocrítica, as vozes silenciadas dos povos originários que carregam em seu cerne uma preocupação de convivência em harmonia com a natureza, ou seja, aprendizado da reverência com a natureza. De frente com a mesma indagação do por quê não conseguimos viver em harmonia com o meio ambiente, Ashitaka indaga sobre essas mesmas preocupações à Moro, a deusa loba de trezentos anos de idade protetora das florestas, que responde: “Típico. Egoísta. Você pensa como um humano”.
Em contraste, San, também conhecida como Princesa Mononoke, é uma garota humana criada pela deusa loba Moro, que reflete uma concepção primordial de defesa à natureza. A San entrega sua vida para defender as florestas, lutando ferozmente contra os humanos que querem as invadir. Para San, não existe o conceito de remediação de Ashitaka, pois ela é mais loba que mulher e por isso ela se entende como parte daquele ecossistema intrinsecamente. Destruir a floresta é destruir parte dela. Assim, San é o outro lado da moeda de Ashitaka, uma que é muito mais próxima de nós e muito mais perto da nossa realidade.
Não posso deixar de mencionar que escrevo essa coluna na primeira semana de setembro de 2024 no Brasil. No instante em que redijo esse texto o ar está difícil de respirar, estamos em uma seca extrema e o céu está esfumaçado. Como citou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estamos vivenciando o maior número de queimadas em quase vinte anos e enfrentando a pior seca da região em mais de quatro décadas. De acordo com dados do Mapbiomas, apenas no primeiro semestre deste ano, as queimadas destruíram quatro milhões e meio de hectares do território brasileiro.
Perante essa nossa realidade atual, a busca pelos ideais de Ashitaka estão um pouco longe de nós. Quando ele é amaldiçoado após salvar sua aldeia de um deus protetor da floresta que foi consumido pelo ódio e se transforma em um demônio, ele consulta com a “Velha Sábia” de sua aldeia e ela lhe indica o único tratamento para sua maldição: “enxergar o mundo sem ódio”. É neste ponto que a ecocrítica muitas vezes permanece em um debate utópico, pois, diante dos crimes cometidos contra a natureza, não conseguimos sanamente seguir o conselho da Velha Sábia. Infelizmente não temos uma deusa em forma de lobo buscando vingança pelas queimadas, no nosso caso, a loba vive em nós. Encontrar o que isso significa para cada um é compreender a necessidade de exercer ambos os valores de San e os de Ashitaka, lutar e buscar ouvir as vozes silenciadas. Nas palavras da deusa loba: “A vida é sofrimento. É difícil. O mundo é amaldiçoado. Mas ainda assim, você encontra razões para continuar vivendo.”
Notas de rodapé:
- Em 1516, Thomas More criou a palavra “Utopia” para batizar a ilha descrita pelo marinheiro português Raphael Hythloday em seu livro e como título da obra. No entanto, embora esse neologismo tenha surgido para aludir a lugares paradisíacos imaginários, ele também foi usado para se referir a um tipo particular de narrativa, que ficou conhecida como literatura utópica. Para criar seu neologismo, More recorreu a duas palavras gregas ouk, que significa “não” e foi reduzido a u, e topos que significa “lugar”. Etimológicamente, a utopia é, portanto, um lugar que é um não-lugar, simultaneamente constituído por um movimento de afirmação e negação.
- Vale ressaltar que Ashitaka é o último príncipe do povo Emishi, que, historicamente, é um povo originário essencial na formação da história e identidade do Japão, sendo conhecidos tanto por sua resistência à centralização quanto por sua cultura, que moldou as interações entre o estado e os povos originários do Japão.
Giovanna Suleiman é mestra e doutoranda em Letras no Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES-PROEX). Completou cursos de escrita, música e literatura da University of Oxford, Harvard University, Wesleyan University e Berklee College of Music (com bolsa de aluno de destaque). Atualmente, pesquisa distopias e ecocrítica.