A inacreditável ideia de nunca mais te ver… Porto Alegre.
“Cheiro de borregard, vai chover”, assim diziam meus avós. Assertivos na previsão do tempo. Para quem não sabe era assim que a população de Porto Alegre, nos anos 1980, 1990, compreendia que lá vinha chuva. O vento virava do sul. Era o famoso minuano que fazia um barulhinho ao passar pelas frestas de portas de janelas… vuuuuuu…vuuuu… tudo isso era o jeito que tínhamos de saber também que também a água do Rio Guaíba ia subir. Do alto do décimo andar no apartamento dos meus avós onde vivi boa parte da infância, era possível ver as águas ficando marrom forte e as ondulações fortes do rio rumo à cidade.
A borregard, para quem nunca sentiu, parece mais um cheiro de ovo podre, e ele vinha até nós porque o vento passava por uma planta de produção de celulose, – que hoje ainda existe – e, então, soltava gás sulfídrico de suas chaminés. Os meus avós tinham acostumado com aquilo. O minuano era o sinal da natureza, aviso da chuva, mas agora ele era percebido pelo cheiro vindo da poluição gerada pelo homem.
Com o tempo Porto Alegre foi se tornando mais consciente politicamente da importância de leis que protegessem o meio ambiente. Muito se dizia que era a cidade mais arborizada do Brasil. Me lembro que em determinado momento não tinha mais a tal borregard, ao menos não se sentia em Porto Alegre. Era a lei que tinha obrigado a fábrica a colocar filtro na chaminé.
Apareceu um caminhão que levava um tal de lixo reciclado. Aprendi na escola a separar o lixo. E nunca esqueci o dia que comentei sobre isso com a minha avó e ela me olhou como se eu parecesse um E.T. que posou naquele instante falando outra língua.
Também foi a escola que levou minha turma para conhecer o famoso DMAE, o Departamento de Águas e Esgotos da cidade. Era um orgulho de todos. Um sistema que funcionava também para segurar as águas quando a chuva vinha forte. Como explica um ex engenheiro aposentado da prefeitura neste vídeo (https://www.instagram.com/reel/C6nD83-sg4N/?igsh=MnRueXF5aHJwcTNi): “todo ano a gente pagava um mergulhador para ele revisar todas as comportas submersas”.
Nesta época Porto Alegre era uma cidade de seres políticos. Tinha um tal de Orçamento Participativo, sistema de participação política que levava quase todos a participarem. Isso mudou a cidade. Mas com o tempo isso foi mudando. Meu avô se foi. O vento minuano também… quase nem canta mais pelas frestas das portas. A maneira como as pessoas entendem a política também mudou… começou a ser coordenada por redes sociais que mais distribuem mentiras do que debates sérios sobre a realidade.
Em 2013 já não tínhamos mais aquela janela do décimo andar para ver o rio. A geração dos meus avós não tinha muito ideia de que não deveria existir a tal “borregard” ou que o lixo deveria ser separado. Ou que continuar vivendo aquele estilo de vida era como “comer a terra”, tal como diz Ailton Krenak.
Desde então, também uma outra lógica política se instaurou na cidade. Uma lógica de privatização e desmonte destes departamentos públicos que protegem de grandes desastres. Ao ponto de, no ano passado, 2023, o prefeito gastar um total de zero. Isso mesmo, ZERO REAIS no sistema de melhoria do sistema de cheias como informou a matéria do UOL: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/07/porto-alegre-nao-investiu-um-centavo-em-prevencao-contra-enchentes-em-2023.htm
O clima mudou, isso é claro. A temperatura dos oceanos está acima do normal há meses. A minha geração sente sofre as consequências das escolhas de gerações anteriores. De quem está no comando decidindo não gastar com prevenção. Decidindo seguir adiante mesmo sabendo que lá na frente tudo vai dar errado. Os relatórios avisando sobre isso são de 1960, 1990, 2015, todo ano tem um do Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima da ONU.
Quando às 21h45, do dia 03/05/2024, Porto Alegre ultrapassou o nível de 4m76cm da enchente de 1941, o que mais doeu foi saber que isso não era uma surpresa. Isso era uma confirmação de milhares de previsões. Mas, como estão falando nas redes: todo filme de apocalipse começa com um cientista sendo ignorado.
A natureza não é política. Para ela não existe bem ou mal, esquerda, direita, dia de semana, folga. Mas nós somos seres políticos e esta enchente é política. Ela é consequência de muito apoio a todos que ignoraram os cientistas e, em nome do lucro de alguns se deletaram relatórios, se mataram ambientalistas, se calaram vozes indígenas e isso continua acontecendo.
A água, ao contrário da nossa percepção mais comum, não sobe de repente, ela sobe aos poucos. Ela sobe centímetro a centímetro, voto a voto, corte de verba a corte de verba, privatização a privatização, decisão política a decisão política, corte de árvore a corte de árvore, incêndio a incêndio, fakenews a fakenews, desmonte de lei ambiental a desmonte de lei ambiental, que alimentamos este grande desastre.
Hoje eu vejo as ruas por onde passei, o amado cinema da Casa de Cultura Mário Quintana alagado, a minha mãe sem poder trabalhar porque não há mais centro para ir, o estádio onde fotografei a Copa do Mundo alagado, o parque, o querido bairro da Cidade Baixa… um amigo meu teve que ser resgatado na janela de casa. Outros eu nem sei onde estão. Outras pessoas perderam suas vidas, perderam tudo que tinham.
Tem coisas que, talvez, nunca mais vamos ver de novo. Tem cidades inteiras que talvez tenham que ser reinauguradas em outro lugar. E o que mais preocupa é que ninguém sabe o que vai sobrar quando a água baixar.. E quanto a água vai baixar? Ninguém sabe. Me lembro de me chamarem de eco chata, sim eu sempre incomodei falando sobre estas previsões dos cientistas. E a reposta que vinha era que isso só iria acontecer no futuro muito distante. Bom, bem vindos ao futuro.
Fotos: Ramiro Furquim/ @outroangulo
Volta a chover agora (quarta-feira dia 08/05) em Porto Alegre, talvez até o vento minuano tenha voltado a soprar, infelizmente, trazendo a água em direção à cidade. Minha avó se foi em 2012. E hoje eu só consigo pensar que, em meio a cobertura das turbulentas manifestações de 2013, entre o gás lacrimogênio e as balas de borracha, um dia olhei para a janela do apartamento dela e pensei: parece que ela sabia que era hora de ir, pois, a partir dali tudo ia, literalmente, por água abaixo.
Uma agradecimento especial ao amigo fotógrafo Ramiro Furquim que cedeu as fotos para esta coluna.